Temos tendência (nós, europeus) de falar na África como um todo, mas os 54 países do continente representam realidades muito diferentes. Para começar, podemos dividi-la geograficamente em três zonas, o Norte, o Sahel e “Africa tropical”. (Esta divisão é uma simplificação minha, para efeitos políticos.) O Norte é árabe e muçulmano, o Sahel é uma multidão de etnias e religiões (com predominância da muçulmana) e o restante, para o Sul, é habitado por tribos negras, com a excepção não muito pacífica da África do Sul, onde há 4,5 milhões de brancos.

Um ponto comum a quase todos eles é que, durante as guerras da independência contra os colonizadores europeus, na I Guerra Fria (1945-89) foram apoiados pela então URSS e seus satélites. Portanto, ao contrário de nós, veem a Rússia com simpatia.  Muitos seguiram até o modelo soviético, pelo menos em teoria, e só o abandonaram oficialmente nas décadas de 1990-2000, quando esse modelo colapsou em todo o mundo (menos em Cuba, Coreia do Norte, China, Laos e Vietname, que eu me lembre.) Muitos são hoje ditaduras e autocracias sob uma capa democrática. Alguns, sobretudo no Sahel, são disputas tribais e religiosas a que poderíamos chamar de anarquias militarizadas.

No período que se seguiu ao fim da I Guerra Fria, enquanto Moscovo procurava atabalhoadamente um formato político viável, distanciou-se dos seus antigos protegidos e a China entrou em cheio no continente, segundo aquele modelo de emprestar grandes quantias para obras monumentais (construídas por trabalhadores chineses) e assim ficar com os países endividados para sempre. Calcula-se que o investimento de Pequim em 16 países africanos estava em 7,35 mil milhões de dólares em 2020. Só em 2021 investiu mais 2.96 mil milhões.

Em 2012, com o primeiro mandato presidencial de Putin, pode dizer-se que a Rússia encontrou a estabilidade política: uma ditadura com a capa democrática cada vez mais inverosímil. E, a partir de 2018, Moscovo voltou a ter massa crítica e organização para se interessar pela expansão territorial, neo-colonial ou pela influência política e económica.

Não tendo capital para grandes investimentos, propõe acordos militares, diplomáticos e económicos.

Na vertente militar, além de fornecer armas aos governantes e às facções que lutam pelo poder no Sahel, tem feitos alguns acordos para estabelecer bases logísticas. Mas o seu interesse é sobretudo económico - ter acesso a matérias-primas essenciais e negá-lo aos países europeus que até agora as exploravam. Porque, em termos de investimento, não passa de 1% do que os africanos recebem de fora: apenas quatro mil milhões de dólares, dos quais 70% vão para os extremos Norte e Sul: Egipto, Argélia, Marrocos e África do Sul. 

Em 2015 apoiou militar e logisticamente o infame Bashar al-Assad contra a oposição armada síria, alegando que as boas relações já vinham de 1956 e aproveitando a condenação do regime pelos países ocidentais.

A intervenção russa tem sido mais importante nos países do Sahel - Niger, Mali, Chad, Nigéria, Sudão, Senegal, Burkina Faso, Mauritânia e Eritreia - através do grupo mercenário Wagner. A região era anteriormente de “influência” francesa; Moscovo conseguiu expulsar os franceses, e os destacamentos norte-americanos em Burkina Faso, Nigéria e Chad. Os Wagner operam no Sudão, República Centro Africana e Mali. Exploram as minas de ouro e de urânio na Nigéria e Sudão a troco de “proteção militar”.

O Sudão é um dos casos mais desesperados de fome e violência, com uma guerra civil constante, de que já falei aqui. Em Abril, um subsecretário de Negócios Estrangeiros russo, Mikhail Bogdanov, visitou o quartel general de uma das facções em luta, o Exército Nacional; mas anteriormente, em 2022, o chefe da facção oposta, Força de Acção Rápida, visitou Moscovo. 

Mais recentemente, a Rússia decidiu “atirar-se” aos PALOP. Uma vez que Portugal apoia a Ucrânia e pertence à NATO, tornou-se um país hostil a Moscovo, que se sente no direito de entrar nas nossas zonas de influência em África. Recentemente assinou acordos com Angola e São Tomé. O acordo com São Tomé prevê “troca de informações sobre questões de mútuo interesse no domínio militar”, assim como – reforçando a ideia acima - “troca de experiências e informações sobre a implementação das doutrinas de defesa nacional”. As partes comprometeram-se, igualmente, a efetuar “consultas sobre questões de segurança global e regional” e a organizar “atividades conjuntas de formação operacional e de combate”; “participar em exercícios militares”; “escala de navios militares e visitas da aviação militar”. Tudo isto é típico da aproximação dos russos a outros países africanos. Também se fala de um acordo com Moçambique, cujos contornos ainda são desconhecidos. 

Uma delegação da CPLP foi convidada a participar num evento cultural na Biblioteca Parlamentar Nacional da Geórgia, no âmbito das celebrações do 5 de Maio – “Dia Mundial da Língua Portuguesa” e “Dia da Língua Portuguesa e da Cultura na CPLP” -, e na cerimónia de juramento militar do 26 de maio, que assinala o Dia da Independência da Geórgia.

Resumindo, Moscovo está a expandir os seus interesses para lá do Sahel. 

Lisboa decerto não fez nem fará nada para impedir estas andanças, mas os norte-americanos não estão dispostos a ceder terreno aos russos. Não é por acaso que, na semana passada, Biden recebeu na Casa Branca o presidente do Quénia, William Ruto, com honras de Estado e muita conversa sobre uma “velha amizade de 60 anos” e cooperação a vários níveis, inclusive no desenvolvimento de Inteligência Artifical (IA). É preciso levar em conta que o Quénia é a segunda maior economia do continente, a seguir à África do Sul.

Pode dizer-se que esta II Guerra Fria tem três potências em disputa, os “Ocidentais” (Estados Unidos e Europa), os “Orientais” (China e Coreia do Norte) e os “Euroasiáticos” (Rússia, Bielorrússia). Lembra muito o mundo inventado por Orwell em “1984”, não é?