Antes de dizer o que pretendo dizer, torna-se necessário declarar a minha relação pessoal com o Reino Unido – da maneira mais curta possível, pois esta coluna não é sobre mim, mas sobre os ingleses. Estudei (economia) e depois, quando resolvi mudar de vida, trabalhei (como fotógrafo aprendiz) em Londres. Passava férias em Ramsgate, uma praia na costa do Canal. Sou aquilo a que se costuma chamar anglófilo. Gosto do sentido de humor britânico, da pompa e circunstância das instituições (culturais, recreativas) e de uma parte do sistema de relacionamentos que os ingleses criaram. A parte que não gosto é a “snobeira”, o sistema de classes tão instituído que até se vê na maneira de falar das pessoas, no corte de cabelo, na postura.
Quanto ao relacionamento, funciona mais ou menos assim: os ingleses não são muito espertos – não sei se mais ou menos espertos do que os portugueses ou os franceses – mas a estrutura de preconceito em que vivem incentiva-os a não pensar fora da caixa. O que se vê, por exemplo, no fascínio mórbido com a família real, que é venerada e considerada o símbolo de uma ordem superior, mas ao mesmo tempo passa por um crivo diário de escárnio e mal-dizer sem paralelo noutro país civilizado. A outro nível, as classes mais de escalão sócio-económico mais baixo – os “have nots” – aceitam pacatamente ser dirigidas pela classe superior – os “haves” - educadas em colégios especiais e imbuídas do espírito altaneiro de que o Reino Unido é um país singular, com um estatuto único no seio das nações.
Falando ainda do relacionamento na sociedade, e da pouca curiosidade intelectual do homem comum: para tornar possível uma convivência tão desigual entre eles, os ingleses inventaram um código social de “boas maneiras” que dispensa maior profundidade nos assuntos. Tudo está codificado; o que dizer numa dada situação, como se comportar de acordo com o seu estatuto, como ocultar os sentimentos e filtrá-los numa conversa cheia de frases feitas e temas convenientes.
O espírito do Império ainda prevalece, embora o Império se tenha desboroado num processo que começou há precisamente cem anos. (Isto não nos deve surpreender; nós, que deixámos de ter Império há cerca de duzentos, em 1822, ainda guardamos uma nostalgia incómoda.) Os ingleses, como um todo, com os seus ungidos à cabeça, ainda acham que são melhores; que a sua democracia é mais perfeita, os seus produtos mais bem acabados, as suas finanças mais estruturadas, os seus gostos mais requintados. (É interessante que nunca tenham querido exportar o seu sistema democrático, precisamente por acharem que lhes dava uma superioridade sobre os outros países. Wellington dixit.)
Não é por acaso que o mais convincente argumento para o Brexit tenha sido “o retorno da nossa soberania”. É o que ouvimos ainda ontem, em plena debacle do Brexit: “Não queremos ser governados pela Europa; não queremos ser regidos pelas leis europeias; não queremos europeus a trabalhar lado a lado connosco.” (Os paquistaneses, indianos e outras nacionalidades não europeias não contam, porque lhes está vedada por nascimento a inglesice ancestral.)
Os ingleses nunca se integraram verdadeiramente na Europa, porque para eles não existe uma Europa; há o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, e há o Continente.
Numa cena viral da série “Sim Senhor Ministro”, o Secretário Geral do Ministério, Sir Humphrey Appleby, explica ao ministro que o Reino Unido está na União Europeia porque é contra a União Europeia; só estando dentro a pode sabotar à vontade e, mantendo a sua independência, anarquizar com a independência dos outros. Com o tal sentido do humor tão extraordinário, os ingleses expõem abertamente no seu canal nacional de televisão o que pensam em relação aos cafres do Continente. E, se querem ver outro inglês usar o mesmo sentido de humor para explicar a atitude dos ingleses com Europa, vejam o muito contemporâneo John Oliver. O que ele concluiu, e qualquer inglês que pensasse no assunto poderia concluir, é que se o Reino Unido sair da Europa mas quiser continuar a negociar com os europeus, terá que aceitar os regulamentos da União Europeia, ao mesmo tempo que perde o direito de participar nas decisões comunitárias.
E assim, sem ter pensado muito no assunto há dois anos, os ingleses vêem-se agora à beira do desconhecido, na mais completa confusão sobre o que fazer. Comentar o estado do tempo ou beber uma chávena de chá, desta vez não vai eliminar a iminência do desastre. Os senhores muito finos continuam a falar na escolha democrática que o Reino Unido fez, e na soberania que eles acham representar em nome dos eleitores; os interesses regionais da Irlanda do Norte e da Escócia sentem que não foram ouvidos e dizem aos senhores finos que na tal escolha democrática votaram para ficar na União Europeia; os interesses económicos, grandes e pequenos, que entretanto fizeram as contas, também não vêem vantagens na tal soberania que os impedirá de comprar e vender sem restrições com os outros europeus.
Theresa May, uma senhora muito fina que deve ser encantadora num chá das cinco, tem na mão uma batata quente que os radicais que querem sair lhe atiraram para a mão, porque eles, tão cheios de opiniões, não querem a responsabilidade de as por em prática.
Não há como não gostar dos ingleses. Também não há como não sentir um prazer maldoso a ver que eles, que sempre nos tramaram, estão agora a tramar-se a si próprios.
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