Gerir a Saúde não é gerir os episódios que vão alimentando a espuma dos dias na comunicação social. Muitos deles são apenas parte de estratégias maiores cujo objetivo é gerar pequenos condicionamentos às dinâmicas de agendas mais amplas, quem têm como foco a massa de dinheiro que a Saúde tem à sua disposição todos os anos.

Gerir a Saúde é gerir um complexo de infraestruturas gigantesco, com milhares de trabalhadores e necessidades de investimento e gastos correntes, com recurso a metodologias e ferramentas de gestão do século XX. Ao que acrescem as questiúnculas diárias que decorrem de egos e pequenos poderes. 

Gerir a Saúde não é só gerir a prestação de cuidados. É também gerir, muitas vezes, o que lhes está a montante e a jusante, sem esquecer a definição da estratégia e das metodologias para acompanhamento e avaliação desta. 

Tudo isto ao mesmo tempo que se tem uma panóplia infinita de competidores e operadores privados no mercado, que querem ficar com as prestações de baixos custos e elevado rendimento, enquanto procuram subvenções por parte do Estado de forma a diminuírem ainda mais o seu risco operacional. Obviamente, respaldados numa intrincada teia de interesses pessoais e corporativos cujos tentáculos se diluem entre o setor público, privado e social, e que encontram no poder político, independentemente de quem governa, os respetivos eixos de transmissão.

Este estado das coisas dá azo a que apareçam, de tempos a tempos, os ditos iluminados, que se propõem a realizar reformas radicais e estruturais, quase que refundando todo o sistema e prometendo a eliminação de todos os males de um sistema que consideram estar pejado de incompetentes e interesses. O problema é que estas reformas radicais não são mais do que copy paste e proxys de experiências ocorridas em outros lugares, sem que façam sequer o esforço de avaliar o impacto que tiveram nesses lugares ou a reflexão sobre a sua adequação ao nosso contexto.

Mas, retomemos o assunto que nos trouxe aqui. A pressão sobre a atual ministra da saúde é constante na comunicação social. É uma pressão inteligente, pois cinge-se a questões muito concretas, foca-se em intervenientes chave e esforça-se para não deixar alastrar o problema ao restante governo, nomeadamente ao primeiro-ministro. Ou seja, é uma pressão dirigida para enfraquecer a reputação e autoridade da ministra. 

(Devo declarar desde já que não me revejo nas policies e politics do atual governo na área da saúde, pelo que esta análise não visa justificar a ação do ministério da Saúde ou mitigar qualquer falha na sua ação. Gosto, porém, de procurar ver além das ilusões com as quais diversas forças sociais tentam manipular a opinião pública diariamente).

Desde cedo ficou claro que o ministério da Saúde iria ter diversas “cabeças” no atual ciclo governativo. Pessoas com peso político, formal e informal. Esta estratégia servia bem o objetivo de diluir a responsabilidade pelos problemas que acontecem diariamente na Saúde, dado que permitia transmitir à opinião pública a intricada teia de poderes e de circuitos de decisão que modelam os processos. Também permitia que as decisões realmente importantes pudessem ser tomadas, e as respetivas ações implementadas, através de mecanismos politicamente mais ágeis.

Todavia, desde cedo, tanto a oposição como a comunicação social e restantes partes interessadas do sector procuraram englobar todos estes agentes nos problemas que iam acontecendo, de forma a corresponsabilizá-los. Ou seja, para cair um, teriam que cair todos, o que torna mais difícil o processo de imputação de responsabilidades objetivas e a construção de narrativas dirigidas apenas a um indivíduo, que seria, neste caso, a ministra da Saúde. Obviamente que o governo, ao seu mais alto nível, cedo entendeu isto, e incorporou esta dinâmica na gestão política do dossier “Saúde”. As interdependências existentes e interesses conexos eram demasiado complexos e profundos, pelo que importava diluir a força dos embates de forma a que não caísse tudo por terra em simultâneo.

Mas quem seriam os promotores da agenda anti ministério da Saúde? Ou melhor, haveria tal agenda ou os problemas que iam aparecendo decorriam apenas de falhas do sistema de governação do ministério, limitando-se a comunicação social e a opinião pública a constatá-los e amplificá-los?

Muitas dinâmicas influenciam o curso dos acontecimentos numa sociedade. Mas sem dúvida que à exceção de eventos catastróficos naturais, a força mais modeladora da sociedade são os seus indivíduos. E o que move os indivíduos são as suas convicções, princípios e valores. Ou seja, é aquilo em que os indivíduos acreditam que determina as suas ações. É também em função das suas crenças que os indivíduos procuram agremiar-se em grupos, na medida em que sabem, à partida, que a partilha do mesmo entendimento do seu papel no mundo e daquilo que este deve ser constitui um fator de segurança individual e coletiva, além de dar resposta à necessidade de pertença e significado que a maioria de nós tem.

Podemos partir do princípio, portanto, que existem grupos organizados na sociedade que perfilam determinadas crenças, gostos, pretensões e estratégias. Existem grupos que têm, por exemplo, uma especial apetência pelas questões ligadas à vida, designadamente o seu início e fim. Na área da Saúde dedicar-se-iam, neste caso, à obstetrícia e aos cuidados paliativos, sendo que a associação entre estes últimos e a oncologia é historicamente forte na cultura médica.

Se esta suposição fosse verdade, seria de esperar que estes grupos, caso procurassem impor a sua agenda no sector da Saúde, utilizariam como alavancas de projeção na comunicação social e no espaço mediático questões associadas a estes sectores, a obstetrícia e os cuidados paliativos / oncologia.

Ora bem, qual foi o principal filão de notícias sobre o mau funcionamento da Saúde no governo anterior e no início do atual (paradoxalmente, num país com a taxa de natalidade em declínio)? E o que dizer do foco atual em questões oncológicas e paliativas (com especial destaque para a área pediátrica, que surte sempre maior impacto social)?

Mas será que todos os grupos que trabalham estas questões estão alinhados na estratégia de alavancarem as suas agendas particulares numa corrosão da perceção pública da eficiência da ação do Ministério da Saúde? Creio que não, desde logo pela multiplicidade de pessoas e partes interessadas que atuam nestas duas áreas clínicas. Mas basta que quem tem a responsabilidade de delinear a estratégia comunicacional dos meios de comunicação social as definam como prioritárias e não faltarão factos e histórias para alimentar a narrativa que se pretende. Haja alguém que os procure e encontre.

Outros grupos haverão que terão outro tipo de agendas e focos prioritários. Todavia, notícias sobre acessibilidade geral aos cuidados de saúde, sobre a qualidade dos cuidados nas instituições públicas e privadas, sobre o estado das especialidades que são a espinha dorsal de qualquer sistema de saúde (como a cirurgia geral, a medicina interna e a pediatria), ou sobre a promoção da saúde e prevenção da doença, são raras. Muitas razões poderão haver para esta diferença de tratamento, sendo que algumas delas poderão estar relacionadas com a cadeia de valor dos processos e tecnologias inerentes a cada especialidade. Por exemplo, os partos de baixo risco são um filão de ouro para os hospitais privados (com o número de cesarianas a aumentar cada vez mais, ao arrepio das boas práticas clínicas, mas alinhadas com a maximização do lucro), mas não vemos estes operadores igualmente preocupados em dar resposta aos internamentos de medicina e cirurgia, ou a situações clínicas cujas intervenções são de baixo custo e com tecnologias bem implementadas.

Portanto, em suma: se quisermos entender muita da pressão que se vai fazendo sobre as várias equipas ministeriais da saúde atentemos ao fluxo financeiro associado a cada motivo de pressão e aos valores perfilados pelos diferentes grupos de pressão. No fim dia, há muito dinheiro em jogo e todos tentam agarrar o que lhes for possível. Mesmo que sejam “trocos”, no volume total de dinheiro disponível, para uma qualquer prestação de serviço onde mais não se faz do que preencher um buraco numa escala de serviço, sem acrescentar qualquer valor para a instituição ou para os utentes.