A chamada Biodiversidade é tão essencial como a manutenção de um ambiente habitável para os humanos, não só pela mais directa necessidade de nos alimentar, como também pelas cadeias de interdependência entre as espécies. Algumas, não sendo propriamente comestíveis, são intermediárias no ciclo de toda a Vida, numa rede complexa que mantém o equilíbrio do planeta. Podemos não consumir corais, por exemplo, mas os corais alimentam certas espécies marítimas que por sua vez sustentam animais de que nos alimentamos. Ninguém gosta de lagartos, outro exemplo, mas os lagartos comem os insectos que podem devastar os cereais.

Em termos mais gerais, calcula-se que desde o século XVI entre 0,5 e 1% dos vertebrados conhecidos se extinguiram, sendo 1,3% de pássaros, 1,4% de mamíferos, 0,6% de anfíbios, 0,2% de réptais e 0,2% de peixes vertebrados.

Não parece muito; mas estes desaparecimentos não ocorreram uniformemente, têm vindo a acelerar à medida que o Homem vai “domesticando” as terras com a agricultura e pecuária e as cidades. Desde 2007, mais de metade da população mundial vive em aglomerações urbanas e calcula-se que essa percentagem passe para 75% em 2050. Os animais estão a desaparecer entre 100 e mil vezes mais depressa do que nos milhões de anos anteriores ao aparecimento dos humanos. Nestes últimos 500 anos, sabe-se de pelo menos 869 espécies que desapareceram.

Esta situação é muito mais difícil de avaliar do que o aquecimento global e a poluição atmosférica, que podem ser medidos com precisão. Na verdade, as mais de 2,1 milhões de espécies animais e vegetais conhecidas são apenas uma fracção das que existem. Há muitos seres que existem fora do nosso conhecimento e alguns provavelmente desapareceram ou vão desaparecer sem que saibamos da sua existência, mas não há dúvidas de que têm funções determinadas no ecossistema.

Embora a questão não seja muito conhecida, está devidamente reconhecida ao nível internacional. Existe uma União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e em Outubro decorreu uma Conferência das Nações Unidas para a Biodiversidade. Anteriormente, houve outra conferência no Japão em 2010. Claro que haver organismos internacionais (e alguns nacionais) interessados no assunto e fazerem-se conferências e reuniões de vários tipos não tem grandes efeitos práticos, como tudo o que acontece nesta esfera da sobrevivência e depende de interesses nacionais e económicos. No que toca ao Aquecimento Global, vimos o que aconteceu com o famoso Acordo de Paris e os resultados exuberantes e vagos do COP26. Quanto à Biodiversidade, haverá uma conferência semelhante em Kunming, na China, em Abril de 2022.

Mas já vimos este filme. No Japão, em 2010 criou-se um conjunto de boas intenções chamado Objectivos de Aichi, destinados a impedir degradação do habitat, excesso de pesca e poluição para a década até 2020. O maior problema é a dificuldade em medir alguma coisa – população de peixes, por exemplo – e o maior ainda é que nenhum país é obrigado a relatar o que esteja a fazer para mitigar o problema. Podemos acrescentar que a vontade política de o fazer deve estar próxima do zero, uma vez que tem um custo alto em termos de rendimento. Quando chegou 2020, as Nações Unidas verificaram que não tinha sido completamente atingido nenhum dos Objectivos e em apenas seis se teriam verificado progressos.

Mesmo assim, há algumas esperanças para o congresso de Kunming – porque não?, a esperança é um valor sem custo. Um dos participantes, que até é português, Henrique Miguel Pereira, professor de Biodiversidade na Universidade de Halle-Wittenberg, na Alemanha, diz que “o momento é decisivo.” Bem pode dizê-lo, a questão é ser ouvido e, mais difícil ainda, haver vontade política dos países em se debruçar sobre a questão. Também aqui a situação é semelhante ao controle do clima: os principais responsáveis são os países mais desenvolvidos, e os menos responsáveis são países pobres que não se podem dar ao luxo de, por exemplo, pescar menos ou reflorestar. E os chineses, que recebem a conferência, será que deixarão de comer pangolins e outras espécies ameaçadas?

Mas vejamos como Henrique Pereira pensa que se deveria resolver o problema: “O primeiro objectivo, que tem vários elementos, inclui compromissos para limitar as extinções dez vezes mais até 2050, ou interromper o aumento actual de extinção em 2030. Outros objectivos incluem a redução de espécies invasivas em 50% e reduzir pela metade o uso de fertilizantes também em 2030.” Por isso dissemos que já vimos este filme...

Para começar, nem sequer sabemos quantas espécies estão em perigo de extinção. E a extensão temporal dessa extinção varia entre grupos de espécies. Por exemplo, os anfíbios estão a desaparecer mais depressa do que os mamíferos, que desaparecem mais depressa do que os pássaros.

Outro objetivo “poético” mas pelo menos quantificável, é o chamado “30 em 30” — manter 30% de terras e mares como reserva ecológica (sem agricultura e sem pescas) até 2030. Há mesmo um compromisso de 71 países para atingir o objectivo dos 30% aquáticos até 2030.

Não se pense que é só nos países pobres, subdesenvolvidos ou autocráticos que estes objectivos levantam problemas. Um exemplo é o que aconteceu na Baviera em 2006. Ao fim de incontáveis anos sem ursos, apareceu um perto da cidade de Zell. Foi logo baptizado de Bruno e recebeu cobertura europeia – era um avanço para o renascimento da população de ursos nas florestas bávaras. Mas o Bruno começou a fazer aquilo que os ursos fazem, nomeadamente atacar e comer animais de criação. Os caçadores abateram-no e agora está embalsamado no Museu do Povo e da Natureza, em Munique.

Não vamos aqui pormo-nos com considerações morais sobre a ferocidade da espécie no topo da cadeia alimentar. Somos sete mil milhões, temos de comer todos os dias e não nos entendemos em quase nada. Tal como os objectivos climáticos (de baixar a temperatura para 1,5º C acima dos níveis pré-industrias, por exemplo), os objectivos biodiversos (manter a profusão das espécies) vão directamente contra a fome e exigem uma cooperação/compreensão internacional que não tem sido possível em quase nada.

Mas não se preocupe. Possivelmente a nossa espécie será a última a desaparecer, depois de ter eliminado todas as outras (mesmo que involutariamente). Se estiver vivo em 2030 – Deus queira! – poderá estabelecer novas metas, talvez para 2060, ou 2100. Entre mortos e feridos, alguém há-de escapar.