Abundam imagens de polícias em Brasília em selfies com os manifestantes que avançavam para o assalto criminoso aos fundamentos da democracia. Não pode haver tolerância com gente que despreza o reconhecimento da legitimidade do adversário.
Vemos propagar-se a recusa de aceitação do contraditório e a queda do respeito pela democracia como bem comum. Aumenta a gente que tem a cabeça baralhada e que demoniza qualquer adversário como o mal absoluto.
Sucedem-se os episódios que mostram o até há poucos anos impensável: que está fortemente ameaçada em sociedades ocidentais a convivência e a possibilidade de falarmos e nos entendermos uns com os outros, com respeito pelas nossas diferenças.
Estamos perante uma questão essencial: como recoser o tecido democrático esgaçado e rasgado pelo discurso do populismo antidemocrático? A resposta passa certamente por uma outra pergunta: como tratar o desencanto que se está a traduzir, de forma extremada, em revolta das pessoas com o sistema político (também social, económico e cultural) e que as leva a hostilizar os valores da democracia?
As respostas requerem muita determinação na discussão e ação, com ambição para tratar o mal, que está crítico.
No imediato, há que tentar evitar que o contágio cresça.
Em 6 de janeiro de 2021, enfurecidos manifestantes pró-Trump, organizados por redes extremistas com a cumplicidade do então presidente cessante, tentaram um golpe de Estado nos EUA, com invasão do Congresso onde iriam ser proclamados os resultados da eleição presidencial e a consequente designação do democrata Joe Biden como novo presidente. O ataque ao Capitólio de Washington por aqueles energúmenos causou cinco mortos e, entre as pilhagens, outros danos imensos.
Agora, dois anos e dois dias depois, milhares de fanáticos de Bolsonaro foram conduzidos a Brasília em dezenas de autocarros com a intenção de replicar o golpe dos trumpianos em Washington. Nos EUA, o ataque foi à sede do poder legislativo. No Brasil, o ataque visou os palácios e as casas sede dos três poderes, o presidencial, o legislativo e o judicial. Destruíram e pilharam, deixaram por todo o lado o rasto da imundície deles.
A seguir, onde será o próximo episódio de agressão desta grotesca gente movida pelo ódio às elites e contaminada pela síndrome da conspiração?
Nada disto acontece de modo fortuito.
Dois anos depois do assalto armado ao Capitólio, a Câmara dos Representantes esteve na semana passada sequestrada por 19 eleitos republicanos que impuseram 15 rondas de voto até consentirem a eleição de um presidente entre as próprias fileiras republicanas. O motivo para o boicote foi o facto de o candidato ter criticado o envolvimento de Trump com os golpistas de há dois anos.
Os republicanos dos EUA tiveram nos últimos dois meses a evidência de que não se pode responder a estas afrontas à democracia com meias-tintas. Porque continuaram na ambiguidade, foram penalizados nas eleições intercalares de novembro (não conquistaram o Senado e ficaram abaixo do esperado na Câmara dos Representantes). Porque não travaram quem recusa o diálogo ficaram reféns do boicote desses 19 extremistas que ao longo de três dias rejeitaram negociar.
No Brasil, as eleições de outubro ditaram a eleição de Lula, mas também puseram apoiantes do bolsonarismo ao comando de vários estados, do distrito federal de Brasília (onde foi evidente a cumplicidade com os golpistas) e em maioria no Congresso.
O Brasil entra em fase de teste à liderança de Lula: será que a gente das seitas que assaltaram os Três Poderes em Brasília vai ser submetida ao rigor da lei? A autoridade democrática vai conseguir impor-se e acabar com a atmosfera de proteção dos golpistas por comandos militares ou militarizados?
Está visto que o bolsonarismo pretende instalar uma estratégia de tensão permanente com o governo de Lula.
Se os Três Poderes da democracia brasileira não souberem fazer prevalecer os valores democráticos, o risco é o de retorno ao passado. Foi há apenas 38 anos que o Brasil transitou de brutal ditadura militar para a democracia, que se constata seguir frágil.
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