A mãe de Dae"Anna é Diamond, uma mulher com 24 anos que trabalha na cozinha do Hilton. Philando, 32 anos, namorado de Diamond, trabalhava como supervisor na cantina de uma escola. Ao anoitecer da última quarta-feira voltavam a casa depois de terem ido ao supermercado. Dae"Anna ia sentada no banco de trás no automóvel. Num semáforo foram parados por uma patrulha de polícia. E começou o inferno.

A voz de Dae"Anna, a menina com missangas cor de rosa enroladas nas tranças que abre esta história, chega-nos de St. Paul, Minnesota, nos EUA, num vídeo que, Diamond, a mãe, captou com o smartphone e difundiu ao vivo através do Facebook quando um dos polícias da patrulha começou a apontar a arma e, com a cabeça inexplicavelmente perdida, entrou a disparar de morte sobre Philando. Qual foi o pecado de Philando? Quando o polícia lhe pediu a carta de condução, enquanto a procurava, ele achou que devia dizer que tinha no carro uma arma devidamente licenciada.

As imagens num vídeo que se prolonga por 10 minutos colocam-nos, manietados, dentro do carro onde tudo está a acontecer. Diamond consegue ser narradora, meticulosa. Ficamos sentados no lugar de Diamond. Vemos o polícia que através da janela aponta a pistola a Philando e que por quatro vezes dispara sobre ele. Vemos o sangue a alastrar na t-shirt branca de Philando. Sentimos a fúria violenta em volta e dentro daquele carro.

É tragicamente necessário referir a cor da pele de uns e de outros. Porque nos remete para uma raiva profunda e difusa, com fundo racial, que volta a explodir e que está a consumir os Estados Unidos da América: Philando, Diamond e Dae são afro-americanos, isto é, são negros e a patrulha policial era composta por homens brancos. Quem devia proteger, despreza e ataca e é inevitável pensarmos que por preconceito racial. O preconceito assenta quase sempre em mentiras, ressentimento e vileza sobre quem não tem culpa.

Faz sentido concluir que os EUA são, apesar de Obama, um país em guerra interior. Em 2015, morreram nos Estados Unidos 1146 pessoas abatidas por disparos de polícias e uma altíssima percentagem é constituída por afro-americanos. No que vai de ano já são 561. A desconfiança entre a comunidade negra e as forças policiais é enorme e alimenta o olho por olho dente por dente, em espiral violenta.

Mathew Brady, pioneiro da fotografia nos EUA, escreveu que com a invenção das câmaras fotográficas em 1893 estas tornaram-se olho da história. Passaram a proporcionar, acrescenta Susan Sontag, um retrato transparente da realidade. Mostravam e mostram, muitas vezes chocam, mas proporcionando tempo para as analisar. Agora, há algo de novo: o smartphone e qualquer uma das redes sociais permite-nos ver a violência no momento em que está a acontecer. Não há mediação, deixa de haver tempo para ponderar. Ficamos imersos numa realidade para a qual, se não estamos preparados, envenena as emoções.

É o que aconteceu na trágica semana passada nos EUA. Menos de 24 horas depois do episódio tremendo em St. Paul, realizou-se em Dallas, a escassas centenas de metros do lugar onde o presidente Kennedy foi assassinado em 1963, uma manifestação contra os abusos policiais sobre negros. Uma televisão mostrava em direto o desfile quando, subitamente, se ouviu um primeiro de vários disparos e os manifestantes desataram a correr sem saber o que estava a acontecer. Parecia cinema de ficção mas é de facto realidade. Foi um franco-atirador, Micah Johnson, afro-americano, antigo combatente americano no Afeganistão que, tomado pelo ódio, matou cinco polícias brancos que controlavam a manifestação dos negros.

Na véspera tinham sido reveladas as imagens de um outro episódio brutal, em Baton Rouge, capital do Louisiana, que nos mostram polícias a disparar à queima-roupa sobre um negro, Alton Sterling, 37 anos, quando este já estava imobilizado no chão de um parque de estacionamento.

Está assim esta América onde há mais armas de fogo que pessoas. O filósofo Martin Walzer comenta que a violência fez sempre parte da sociedade nos EUA, vem do modo como o país nasceu. Mas nos últimos anos há uma nova vaga que parece associada à convicção de muitos brancos, sobretudo da América interior, de que estão a perder o controlo do país. Isso leva alguns deles, sobretudo entre os mais pobres e os menos instruídos, a reações violentas agravadas pela atmosfera de crise económica. O facto de as minorias de cor tenderem a tornar-se maioria nos EUA está a puxar um clima de guerra civil. A campanha de Donald Trump concorre para essa atmosfera. Instala os medos. É o mesmo que fez McCarthy nos anos 50.

Agora já há quem admita que a matança de cinco polícias na cidade que foi teatro do assassino de Kennedy pode redefinir a atual corrida presidencial nos EUA. Também há quem receie neste 2016 um novo 1968, igualmente ano eleitoral, em que muitos americanos sentiram a violência a ficar fora de controlo. Então, no espaço de dois meses, dois vultos no combate pela dignidade e pelos direitos civis na América foram assassinados: o reverendo Martin Luther King em 4 de abril e o candidato presidencial Robert Kennedy em 6 de junho. Era o ano em que a América se confrontava com a derrota no Vietname.

A brecha social e económica entre brancos e negros nunca deixou de ser um sério problema doméstico nos EUA. Com explosões de tempos a tempos. Há 25 anos, em março de 1991, Rodney King, taxista negro de Los Angeles, mandado parar por excesso de velocidade, foi barbaramente agredido por polícias de duas patrulhas. A violência foi filmada por um videoamador que entregou as imagens às principais redes de televisão. O choque foi tal que obrigou a sentar os polícias no banco dos réus. Mas os juízes decidiram absolver os polícias e o resultado foi uma vaga de protestos violentos que deixaram mais de 50 mortos e mais de dois mil feridos. O clima de guerrilha urbana só foi estancado ao fim de uma semana com a intervenção de 13 mil soldados e a declaração de recolher obrigatório.

A violência desta última semana causou sete mortes absurdas. Há uma nova era iniciada, a da violência mostrada em direto, sem mediação, nas redes sociais. O risco sério é o de que cada morte puxe mais sangue. Por mais que apeteça não as ver faz falta que se discutam estas imagens destes dias. Pode ser que façam abrir os olhos dos americanos para o terrível efeito dos ódios e das armas de fogo nas mãos de todos. Todos somos espetadores e as consequências são imprevisíveis.

A voz aflita da pequena Dae"Anna tem de levar a gente sensata a tentar qualquer solução para que os EUA se livrem da ameaça desta guerra civil.

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As primeiras páginas escolhidas hoje no SAPO JORNAIS levam-nos à festa do futebol: esta é hondurenha, esta é de uma bíblia francesa para o futebol, e há as madrilenas do As e da Marca. E há este extra do Expresso.