Há uma semana, no mesmo dia que o encontro de Marcelo Rebelo de Sousa com Donald Trump fazia manchetes em Portugal, nos Estados Unidos era outra a notícia que caia como uma bomba: o juiz conselheiro do Supremo Tribunal Federal Anthony Kennedy anunciava que se iria reformar em Julho. Para entender o alcance desta atitude de Kennedy, que está com 81 anos, é preciso levar em conta duas coisas.
A primeira é a forma como funciona o sistema judicial norte-americano.
O Supremo Tribunal, órgão de última instância constituído por nove conselheiros escolhidos vitaliciamente, tem o poder de modificar as leis existentes. Ao contrário do que acontece noutros países, como o nosso, o Supremo não julga todos os apelos automaticamente; tem a possibilidade de se recusar a apreciar os que considera que não precisam de clarificação – ou seja, que a lei como está, está bem aplicada. Se o Supremo decide aceitar um caso, isso já significa que a lei precisa de modificada ou, pelo menos, que a sua interpretação carece de esclarecimento. Publicado o acórdão do Supremo, passa a ser lei federal.
As decisões são tomadas por maioria, daí o número de conselheiros ser ímpar; nunca há empate. Um juiz lavra a decisão da maioria, e os juízes que votaram contra podem justificar a dissidência.
Quando um conselheiro sai, ou por falecimento ou porque decide reformar-se, cabe ao Presidente em exercício escolher o seu substituto, que tem de ser aprovado pelo Senado.
Quando o Senado tem maioria do partido contrário do Presidente, pode não aprovar. Tradicionalmente, dificultava a escolha e acabava-se por um consenso. Essa tradição acabou em 2016, quando Barack Obama tentou nomear Merrick Garland, um juiz de pendor liberal, para substituir o juiz conservador Antonin Scalia, que tinha falecido. O Senado de maioria republicana, já então dirigido por Mitch McConnell, alegou que Obama estava em fim de mandato e portanto não podia escolher. O que os republicanos esperavam era que o Presidente seguinte fosse republicano e nomeasse outro conservador. E foi o que aconteceu: Trump ganhou a eleição e nomeou Neil Gorsuch, um “jovem” ultra-conservador de 50 anos. A idade conta, pois garante a permanência do conselheiro por muitos anos.
A segunda situação a levar em conta é precisamente o pendor conservador ou progressista dos juízes, que determina as decisões e, em última análise, a tendência do Supremo Tribunal nas questões que aprecia. Não é certo que um juiz nomeado por um presidente republicano tome sempre decisões conservadoras. O juiz Kennedy que agora se retira é um bom exemplo disso. Nomeado por Ronald Reagan em 1987, logo se mostrou um centrista. Reagan tinha escolhido primeiro Robert Bork, abertamente reaccionário, e que não passou no Senado. Assim, no habitual consenso, acabou por escolher um conservador moderado, que foi bastante equilibrado nas decisões, ficando do lado dos liberais em certos casos, e do lado dos conservadores noutros.
Com o tempo, Kennedy passou a ser visto como o voto de desempate num Supremo dividido entre quatro conservadores e quatro liberais. Nas duas últimas decisões do tribunal, sobre os direitos dos sindicatos e sobre a proibição da entrada de nacionais de sete países nos Estados Unidos – o famoso “travel ban” - Kennedy votou com os conservadores. (Os sete países classificados como “muçulmanos” são a Líbia, Síria, Irão, Somália, Iémen, Venezuela e Coreia do Norte.)
Mas Anthony Kennedy foi decisivo em casos muito importantes para as liberdades civis. Em 2015 votou a favor do casamento de pessoas do mesmo sexo. Impediu sempre que o tribunal voltasse a apreciar o famoso caso Roe vs Wade, de 1973, que legalizou a interrupção voluntária da gravidez. Em 2002 fez parte da maioria 6-3 que extinguiu a pena de morte para os deficientes mentais. Em 2005 também acabou com a pena de morte para menores, e em 2008 para crimes que não incluíssem homicídio. Também votou para restringir o isolamento por tempo indeterminado dos reclusos.
Ainda na questão do aborto, Kennedy foi decisivo para travar regulamentos estaduais que tornavam impossível o funcionamento da clínicas de interrupção voluntária de gravidez (IVG) – como no Texas, onde um emaranhado de regras as tornavam impraticáveis, ou no Iowa, cuja legislatura pretendia que o aborto fosse proibido assim que se detectasse o coração do feto, às seis semanas.
Por tudo isto, a notícia de que Anthony Kennedy se reforma é vista com preocupação e mesmo pânico por parte das organizações e pessoas que receiam uma regressão nestas e outras leis. Trump, satisfeitíssimo por poder nomear um segundo conselheiro para o Supremo, o que fará com que o seu “legado” perdure muito para lá da presidência, na quinta-feira disse que já tinha uma lista de candidatos “great, very great people, very talented”, possivelmente a mesma lista de onde escolheu Gorsuch. E Mitch McConnell na mesma quinta-feira afirmou que despacharia o processo no Senado o mais depressa possível. Os republicanos precisam que a escolha decorra antes das próximas eleições intercalares de Novembro, quando poderão perder a pequena maioria que têm no Senado.
A lista de Trump está a ser analisada a pente fino, mas basta ver os juízes de segunda instância (US District Courts) que já escolheu, para se ter uma ideia do que vem por aí. Um deles comparou a IVG à escravatura, outro chamou Anthony Kennedy de “prostituta jurídica” e outro ainda considerou que as crianças transexuais são “a prova de que o plano de Satanás está a funcionar” – isto para citar alguns exemplos.
Com a saída de Kennedy e a entrada de um juiz conselheiro ultraconservador, os analistas calculam que a questão da IVG – ou seja, a inversão da decisão de Roe vs Wade de 1973, é uma questão de meses, no máximo ano e meio. Algumas associações de defesa dos direitos da mulher já estão a sugerir – nestes dias logo a seguir à notícia – que as mulheres recorram aos dispositivos intra-uterinos. E as vendas de pílulas anticoncepcionais aumentaram, porque há quem prefira ter uma reserva. Na América tudo acontece rapidamente!
Outra situação que poderá mudar é o casamento de pessoas do mesmo sexo. E a legislação sobre as minorias sexuais, nomeadamente sobre o reconhecimento da sua existência, pode também não demorar. Mas há questões menos mediáticas mas igualmente graves, como as situações que permitem a pena de morte, o controle da venda de armas, a liberalização do uso de drogas leves, a situação dos imigrantes ilegais (11 milhões, segundo as últimas contas) e muitos outros casos que o Supremo Tribunal Federal poderá escolher para mudar a legislação.
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