Há cerca de uma década, em África, estive em quarentena cerca de 4 a 5 dias, com febre, diarreias e vómitos, e até hoje não sei que ‘bicho me mordeu’. Os resultados mostravam-se inconclusivos para a malária e os anti-corpos da febre tifoide atacavam a toda a força. Lembro-me do médico, meu amigo dizer: “Esqueça, dificilmente vamos descobrir o que é isto. Vamos esperar pacientemente e ver a evolução”. Isolados, sozinhos, do outro lado do planeta, sem família por perto, omitimos a todos o que se estava a passar. E passou. Não deixei de amar África, partilhei essa quarentena com um grande amor da minha vida e ela tornou-nos mais próximos.

“Amor em tempos de cólera”, de Gabriel Garcia Marquez (colombiano), conta a história do amor entre Florentino e Fermina, que passaram mais de 50 anos quase sem contacto. Na sétima arte, imortalizado pelo espanhol Javier Bardem (nascido em Las Palmas, de Gran Canaria) e pela belíssima romana-Italiana Giovanna Mezzogiorno. Dois países hoje assolados pelo nosso sétimo coronavirus. Dois dos países, línguas e culturas que adoro profundamente.

Na obra, reflexões comparativas entre a doença que é o amor e a devastadora pandemia daquele momento histórico - a cólera - emergem discreta e elegantemente. Fernanda Montenegro (idónea actriz brasileira, conhecida por certo de todos os portugueses), assume o papel de Mãe de Florentino (Bardem). Numa cena entre mãe e filho, Florentino, chega a casa, com o que parecem os sintomas da cólera, gemendo, vomitando e com febre:

Mãe: - É cólera, meu filho!

Florentino: - Não, mãe. Eu entreguei-lhe a minha carta…. agora tenho de esperar resposta.

Mãe: - Então filho, goza bem essa dor, tira vantagem dela agora! Enquanto és jovem. E sofre, meu filho, sofre tudo o que puderes, porque estas coisas não duram a tua vida toda.

E a vida toda, é bem curta, como sabemos. Como psicóloga (especializada em MBCT- Terapia Cognitiva Baseada em Mindfulness) e como professora de Mindfulness, estas sábias palavras maternais indiciam o que muitos sabemos e que a ciência confirma: mergulhar e aceitar a dor é a melhor forma de a ultrapassar e integrá-la no nosso ser. A dor é útil, é funcional e adaptativa. ‘A Dor é inevitável, o sofrimento é opcional’ (Buddha). A dor emocional que vivemos nos relacionamentos amorosos pode ser só dor e não se transformar em sofrimento, desde que dominemos a nossa narrativa.

Nestes dias, surgem estatísticas de divórcios, mais intensificados na China, mas que, estimo que surjam um pouco por todo o mundo e em diversos contextos, já que o comportamento humano tende a ter padrões.

Contudo, mais uma vez (e como sempre), esquece-se o resto: Quantas relações começaram neste tempo? Como se começa o amor em tempos de Covid-19? Quantas relações se estão a firmar mais fortes estes dias? Quantas memórias emocionais positivas estarão a ser criadas entre casais ou outros relacionamentos com figuras relevantes? Alguém tem essa estatística? Quantos relacionamentos em isolamento (num mesmo espaço ou à distância) estão a consolidar-se, enquanto lemos este artigo? Quantas abordagens criativas podemos agora conceber com tudo isto? Será “longe da vista, perto do coração” ou “longe da vista, longe do Coração”?

E, retirando mais uma camada, se tentarmos quebrar o pensamento binário estereotipado de que terminar uma relação é negativo e começar uma é positivo?

Como diria o Zen (essa corrente maravilhosa que funde budismo, confucionismo, taoismo, hábitos samurais, etc. e que é extremamente difícil de pôr em palavras) é o que é. É o caminho do meio. O caminho que não julga e que espera que o tempo faça sentido dos acontecimentos.

Quando as notícias do aumento de divórcios na China surgiram há dias, uma parte de mim suspirou de alívio. Centenas de pessoas tinham obtido o ‘empurrão’ de que necessitavam para perceber que os seus projetos de vida não poderia continuar por aquele caminho.

Claro há outras lentes para ver a situação, e vê-la como dramática poderá ser uma opção sempre apelativa (e vendável na TV). Todavia, se não fosse o Covid-19, seria outro factor que os levaria a concluir que aquela relação não contribui para a felicidade daquelas pessoas, nestes curtos anos que passamos por aqui.

Piadas na internet mostram pessoas brincar com a técnica do Time-out ou Time-alone e eu não percebi a piada. Sim, “vou passear um pouco sozinha, pois preciso de tempo a sós” é uma técnica a ser usada em qualquer intervenção de melhoria das relações interpessoais, sejam elas de que cariz for. Comunicar assertivamente o que se necessita e aceitar o que o outro necessita também. Querer tempo sozinho não tem segundos significados.

Muito caminho tem sido trilhado nestes âmbitos, em novas terapias. A terceira geração de terapias cognitivas abraça a terapia de aceitação e, por outro lado, um outro paradigma com o qual trabalho é o de honestidade radical. Todos estes com profundas bases, por exemplo na Morita Therapy, que também tem bases no Zen, e que implica a aceitação do que a vida é. Simples? Mas não simplista. Por isso, em tempos de crise, desenvolve-se autocontrole, aprofundamos o nosso eu e conhecemos melhor o eu do outro. Que tal uma história zen rapidinha? Aqui vai:

"Um dia houve um terremoto que abalou todo o templo zen. Partes dele desabaram. Muitos monges estavam aterrorizados. Quando o terremoto parou, o Mestre disse: "Agora vocês tiveram a oportunidade de ver como um praticante zen se comporta em uma situação de crise. Notaram que eu não entrei em pânico e estava bastante ciente do que estava a acontecer e do que fazer. Guiei todos para a cozinha, a parte mais forte do templo. Foi uma boa decisão, porque sobrevivemos sem ferimentos. No entanto, apesar do meu autocontrole e compostura, eu senti-me tenso, observei atentamente o que se passava dentro de mim, as sensações e emoções que tudo o que estava a acontecer me causavam e dominei os meus pensamentos. Racionalmente, decidi ir beber uma enorme garrafa de água de uma vez só, algo que não faço em circunstâncias comuns."

Um dos monges sorriu, mas não disse nada.

"Do que você está rindo?" perguntou o professor.

"Isso não era água", respondeu o monge, "era um copo grande de molho de soja".

Aprendemos com a crise. A crise provoca mudanças e nós abraçámo-las. Nada disto é pouco habitual para quem trabalha e investiga comportamento humano e, em particular, áreas ligadas à inteligência emocional, temática que, se tivesse sido introduzida devidamente nas escolas há muitos anos, teria mudado a vida de muitas pessoas.

A primeira lei sobre educação sexual nas Escolas surge em Portugal em 1984 e, por essa altura, todos os cientistas sociais já avisavam que a designação era tremendamente limitativa e que era necessário a Educação emocional (e, no seu interior abraçar também a sexualidade).

São frequentemente temas polémicos para alguns que preferem suprimir a informação e continuar a fugir do que necessitamos: Precisamos do nosso manual de instruções. Quando compramos um produto novo, lemos o manual, para perceber como operar.

Porém, caminhamos com um cérebro complexo e maravilhoso, com meandros tão belos de conhecer e atualmente totalmente cognoscíveis e temos medo de abrir o manual? Será medo? Será desconhecimento? Vergonha de saber como funciona a máquina? Como é possível andar com o cérebro e não saber como operá-lo em tempos de terremotos? Em tempos de Crise? Ou em tempos estáveis até?

Se eu vos puder deixar com apenas um conteúdo breve de como o cérebro poderá funcionar quando conectado em ‘modo amor’, que seja a abordagem de John Allan lee, sociólogo canadiano.

Deixo-vos a imagem para que possam analisar os vários amores, que vivem nas vossas vidas e que tirem estes instantes para reflectir sobre eles.

John Allan Lee pesquisou mais de 4000 visões sobre o amor (desde Platão), e esboçou uma teoria em 6 estilos de amor, partindo do amor plural (multidimensional) e sem hierarquia entre os tipos e, por fim, que pessoa a pessoa, ao longo da vida, vai se adaptando, dependendo do momento e do par, ora a um ora a outro tipo de amor.

Se estiver em quarentena enquanto vive um amor Mania ou Ludus, por certo será insustentável. Se estiver a viver o Agape, será transcendetal. Curioso? Leia mais aqui.

Implemento este exercício frequentemente com clientes em consulta, em coaching psicológico e até com adolescentes em dinâmicas grupais de inteligência emocional e todos saem maravilhados com as suas próprias reflexões.

Se compreendemos o amor que estamos a viver, vamos conhecer-nos melhor, iremos testar os seus limites e compreenderemos onde precisamos melhorar.

Curiosamente, Lee foi activista pelos direitos LGBT toda a sua vida, advogando todos o tipo de amor que o humano é capaz e, além disso, morreu também polemicamente, pois aderiu a um grupo activista pelo direito à morte e terminou a sua vida, estratégica e conscientemente, sem doença terminal , em 2013 (Aqui a sua ultima entrevista).

O Amor não tem de durar para sempre e, mesmo que dure não quer dizer que isso nos faça felizes. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (não preciso citar, certo?) e nestes tempos, vivemos o direito à busca pela felicidade e podemos deixar finalmente cair os tabus, preconceitos e pressões de ter de manter relacionamentos (amorosos ou outros) por motivos paralelos, secundários ou socio-economicos até.

Alexandre Dumas dizia “O amor ou arde ou dura: nunca ambos”. Talvez o Covid-19 nos force a decidir o que queremos e o que estamos disponíveis para fazer por eles. Estamos dispostos a finalmente abrir o manual de instruções para mergulhar dentro de nós? E quiçá, partilhar essa maravilhosa experiência com uma pessoa ao nosso lado?

No filme, é sob a falsa bandeira da cólera, que Florentino e Firmina se encerram numa quarentena voluntariamente, pois parece ser, aos olhos deles, a única forma realmente livre e pura de viverem o seu amor em pleno. Haverá quarentenas destas por aí em tempos de covid-19?