Diz ele que sentiu muita compaixão quando viu mãe e filho a irem para a escola e trabalho de bicicleta, à chuva. Não podia concordar mais com o Rafael.

Há cada vez mais gente a andar de bicicleta e também eu fico triste, embaraçado, combalido, ao constatar isso. Claro que a pobreza é algo horroroso, principalmente para quem tem de ver de fora como o Rafael e outros. O que vale é os carros isolam bem o cheiro e não se sente o fedor dos pobres que se deslocam de bicicleta ao ultrapassá-los, se não, seria ainda pior.

O que é mais sofrível de ver são as desculpas que as pessoas arranjam para camuflar a sua pobreza inerente ao escolherem (por falta de opções, claro) deslocarem-se de bicicleta. Dizem que é saudável porque se faz exercício, que se protege o meio ambiente, que se evita o caos mental provocado pelo trânsito na cabeça de cada um, que é muito mais económico. Triste, tão triste. Que mundo é este em que não assumimos que somos pobres e inventamos que não queremos é contribuir para a poluição massiva do planeta? A sério que em 2018 ainda há quem que não tenha percebido que as alterações climáticas são fake news? Estes fenómenos como as bicicletas, a reciclagem, o incentivo a poupar água, o apelo à diminuição do consumismo desenfreado são apenas estratégias que os pobres tentam fazer passar para tentar afectar o capitalismo pelo qual se sentem esmagados. Ou seja, se houver cada vez mais gente assim, os pobres que têm estes pensamentos absurdos de preservar o planeta e contribuir para cidades mais saudáveis e sustentáveis, conseguem ter mais gente como eles e sentirem-se menos marginalizados. Aliás, e isso vê-se no facto de os argumentos económicos, na poupança de água ou no abdicar do carro, não serem tão usados. Simplesmente para os pobres não serem desmascarados e confrontados com as verdadeiras razões para estas opções: não terem dinheiro, como é óbvio.

Quem é que no seu perfeito juízo, se tiver muito dinheiro, não vai querer ter 7 carros no seu agregado familiar, por exemplo? Não somos ninguém se não formos ricos e, acima de tudo, se não o ostentarmos e, lá está, pudermos estar num patamar superior que nos permita ter pena dos pobres. E não é com pensamentos retrógrados de conservação do planeta e “aumento da qualidade de vida” dos cidadãos que o alcançamos.

Eu aqui me confesso. Eu desloco-me quase sempre de bicicleta, de skate ou a pé. Mas trabalho arduamente para um dia ser rico, esquecer que passei por isto, e para poder usar os meus vários futuros carros (com vidros fumados para os pobres não me verem) para não apanhar chuva nem quando for à mercearia ali ao fundo da rua.

Sugestões mais ou menos culturais que, no caso de não valerem a pena, vos permitem vir insultar-me e cobrar-me uma jola:

- "BecaBeca": Novo espectáculo d’ Os Improváveis. O grupo de teatro de improviso está de volta. Eu sou suspeito em recomendar isto porque faço parte dele, mas é um formato excelente. Vai alternando no mesmo espectáculo uma entrevista conduzida por mim ou pelo Fernando Alvim (depende da semana) e eles depois improvisam com base na entrevista (em segmentos alternados de 10 ou 15min). É às quartas-feiras, no Villaret. Na próxima vou estar a entrevistar o Bordalo II.

- "Ham on Rye": Mais um que li do Bukowski. Bom livro, intenso. É sobre a infância e adolescência do autor e é uma boa base para perceber o resto da usa obra.

- "3ª Sinfonia de Brahms": Estava a ouvi-la enquanto escrevia esta crónica e é das coisas mais bonitas do mundo. Ora experimentem.