Nas colunas de opinião do SAPO 24 são inexistentes os comentários à morte de John McCain, e bem - por cá, não consigo justificar relevância que obrigasse ao contrário. Ainda assim, o meu corpo (que há meio minuto flutuava em águas tépidas) automaticamente se vergou com esta responsabilidade auto-imposta: torno a ser o cronista carregador de caixões. Não pretendo passar por coveiro que atira os últimos torrões de letras sobre o finado; a minha vontade é outra, é fazer extrema-unção a um mundo moribundo ferido de morte pela morte dos bons.

John McCain era dos bons. Não era perfeito e tinha capacidade para apoiar causas péssimas, mas era dos bons. Várias vezes foi um beligerante obstinado, daqueles que detestamos, mas nunca foi detestável - não fosse ele dos bons. Há precisamente 10 anos, McCain era o meu candidato à presidência dos Estados Unidos da América, e digo “meu” neste entroncamento de ridículos – é ridículo passar-me por americano e ter um candidato; mas, por outro lado, é ridículo fingir que o peso global da América não nos obriga a ter um candidato.

2008, e em McCain atraía-me a lisura, a liberdade, a honradez, a inteligência, o sentido de humor e a coragem. Era o republicano dos sete costados que, ainda assim, assustava muitos republicanos conservadores e amanhava aliados no seio democrata. Sobre a tal coragem, nem atrevo a prolongar-me, que quanto mais se contar acerca dos seus feitos e os sacrifícios no Vietnam, mais parecerá matéria de lenda. Quando for rodado um filme sobre o cativeiro de 5 anos de John McCain, sobre as torturas que sofreu, a recusa em ser libertado sem os seus companheiros, acharemos tudo matéria de lenda e um inverosímil exagero cinematográfico.

É claro que o bravo currículo de guerra não compensa, politicamente, um currículo de senador com demasiados erros e percalços. Mesmo assim, a minha preferência permaneceu junto do falível McCain, até porque em 2008 eu desconfiava do apelo de Barack Obama. Temia que o lado poster-boy de Barack redundasse numa presidência superficial, sempre mais dependente do carisma que de medidas políticas. Felizmente, os meus receios não se confirmaram na totalidade, o que não impede que tenha havido (sobretudo aqui na Europa) uma constante sobrevalorização da presidência de Obama baseada em magnetismo superficial.

Foram os adversários de 2008 que me arrancaram da toalha de praia garrida e me enfaixaram em mantéis lutuosos. Graças a esses dois homens, eu hoje soube que tinha de voltar à temática pesarosa, embora a deseje só comovente. É que apesar de ter sido tempestuoso o embate eleitoral de há uma década, a história entre os adversários tornou-se (à falta de melhor descrição) comovente. As recentes manifestações de Barack Obama, quer na doença, quer na morte de McCain, são comoventes. E comovente também é a integridade contida neste vídeo, entretanto recordado em sites noticiosos e redes sociais: há 10 anos, por várias ocasiões o candidato republicano impediu que os seus apoiantes vituperassem o candidato democrata. A inteireza era tão abnegada, tão pura, que se alguma vez for adaptada para filme acharemos tudo matéria de lenda, um inverosímil exagero cinematográfico.

McCain e Obama não passaram de adversários ferozes a amigos íntimos. Continuaram opositores, mas o amor de ambos pela civilidade torna-os, mesmo postumamente, em aliados ferozes contra um inimigo íntimo: o incivil grosseiro que ocupa o poder. Foi este exemplo magnífico que me fez escarafunchar no passado, que me levou a rever um blog que mantive em 2008, e a ler todas as minhas reflexões sobre os adversários presidenciais. É divertido lembrar como Sarah Palin (a candidata a vice-presidente “imposta” a McCain) me fez esmorecer um pouco o apoio ao republicano. Mas, mais curioso ainda, é deparar-me com a maneira como festejei a derrota do meu preferido. Festejei mesmo.

Não queria de forma alguma que John McCain perdesse, mas perdeu com tanta graciosidade que logo me fez perceber isto: “o exemplo que está a dar na derrota é provavelmente superior ao legado que iria deixar se fosse presidente”. Um exemplo vitorioso - havia que celebrá-lo. Falhou-se a eleição, acertou-se em tudo o resto, e o discurso de quem perdeu era um discurso a não perder.

Hoje, que quase abandonei águas tranquilas para me entregar a elegias inquinadas, acabo sem mim e sem morte. São as palavras vivas de um derrotado que homenagearão a morte dum vencedor. Aqui, transcrito, fica a quase totalidade do “Concession Speech” de John McCain em Novembro de 2008. Pouco depois de saber da derrota, e perante uma multidão de apoiantes inconformados, McCain arriscou a eternidade:

“Meus amigos, nós chegamos ao fim de uma longa jornada. O povo americano falou, e falou claramente. Há pouco, tive a honra de telefonar ao senador Barack Obama para felicitá-lo...

(a assistência reage com vaias, e McCain tenta calar a reacção)

Por favor! ....felicitá-lo por ter sido eleito como próximo presidente do país que ambos amamos.

(o público torna a vaiar a referência a Obama, mas McCain interrompe os apupos com um gesto)

Numa disputa tão longa e tão difícil quanto esta campanha foi, o sucesso de Obama forçar-me-ia logo a respeitar a sua competência e perseverança. Mas que ele tenha conseguido isto ao inspirar as esperanças de tantos milhões de americanos que antes acreditavam erradamente que tinham pouco em jogo, ou que tinham pouca influência na eleição de um presidente americano, é algo que admiro profundamente e elogio-o por ter alcançado isto.

Esta é uma eleição histórica, e eu reconheço o significado especial que ela tem para os afro-americanos, e para o orgulho especial que hoje tem de lhes pertencer. Sempre acreditei que a América oferece oportunidades para todos os que são laboriosos e determinados. O senador Obama acredita nisto também. Mas ambos reconhecemos que, embora tenhamos evoluído muito desde as velhas injustiças que mancharam a reputação da nossa nação, e negámos a alguns americanos a bênção da completa cidadania americana, a memória das injustiças ainda tinha poder para ferir.

Há um século, o convite do presidente Theodore Rossevelt para que Booker T. Washington (um dos primeiros vultos culturais e intelectuais afro-americanos) jantasse com ele na Casa Branca foi tomado como ultraje em muitos quadrantes. A América de hoje está a um mundo de distância da crueldade e altivez desses tempos. Não há melhor prova disso do que a eleição de um afro-americano para a presidência dos Estados Unidos. Que não haja razões agora para que qualquer americano falhe o gozo pleno da sua cidadania nesta que é a maior nação na Terra.

O senador Obama alcançou algo grande para ele e para este país. Eu aplaudo-o por isso, e ofereço as minhas sinceras condolências pela sua amada avó que não sobreviveu para ver este dia – embora a nossa Fé assegure que ela está em paz na presença do seu Criador e muito orgulhosa do homem bom que ela ajudou a criar.

O senador Obama e eu temos debatido as nossas discórdias, e ele prevaleceu. Não há dúvida que muitas dessas discórdias se mantêm. Estes são temos difíceis para o nosso país, e eu prometo-lhe solenemente hoje que farei tudo ao meu alcance para ajudá-lo a liderar-nos nos vários desafios com que nos deparamos.

Eu insto todos os americanos que me apoiaram, não só a congratulá-lo, mas a oferecer ao próximo presidente a nossa boa-vontade e o esforço sincero para encontrar maneiras de nos unirmos, para chegar aos acordos necessários, para criarmos pontes e ajudarmos a restaurar a nossa prosperidade, defender a nossa segurança neste mundo perigoso, e a deixar aos nossos filhos e netos um  país mais forte e melhor do que aquele que herdámos.

Quaisquer que sejam as nossas diferenças, nós somos compatriotas. E, por favor, acreditem quando vos digo que nenhuma ligação alguma vez teve mais valor para mim do que essa. É natural que hoje sintamos alguma decepção, mas amanhã precisaremos de ultrapassar isto e trabalhar juntos para pôr o nosso país de novo a andar. Lutámos – lutámos com todas as forças que tínhamos. E, embora não tenha sido suficiente, o insucesso é meu, não é vosso.

(a multidão grita: Não!)

Eu estou tão...

(a assistência começa a cantar)

...Eu estou tão profundamente grato a todos vós pela grande honra do vosso apoio e por tudo o que fizeram por mim. Eu desejava outro resultado, meus amigos. O percurso era difícil desde o início. Mas o vosso apoio e amizade nunca vacilou. Nem consigo expressar o quanto vos devo...

(e após alguns agradecimentos personalizados)

Esta campanha foi e será a maior honra da minha vida. E o meu coração está cheio de nada mais que gratidão pela experiência e pelo povo americano, por me terem dado uma oportunidade justa antes de decidirem que o senador Obama e o meu velho amigo, o senador Joe Biden, é que deviam ter a honra de nos liderar nos próximos 4 anos.

Eu não seria um americano digno desse nome se me arrependesse deste destino que me proporcionou o privilégio extraordinário de servir o meu país durante meio século. Hoje, eu era candidato ao cargo mais elevado do país que amo tanto. E hoje, eu mantenho-me seu servo. Isso é bênção suficiente para qualquer pessoa, e eu agradeço ao povo do Arizona por ela.

Hoje...hoje mais do que em qualquer noite, eu guardo no meu coração nada mais do que amor por este país e pelos seus cidadãos, quer eles me tenham apoiado a mim ou ao senador Obama. Eu desejo felicidades ao homem que era o meu opositor e que será o meu presidente. E apelo a todos os americanos, tal como fiz várias vezes durante esta campanha, para que não desesperem com as dificuldades presentes, mas que acreditem sempre no potencial e na grandeza da América, porque nada aqui é inevitável.

Os americanos nunca desistem. Nunca se rendem. Nunca nos escondemos da História. Nós fazemos a História. Obrigado, e que Deus vos abençoe, e que Deus abençoe a América!”

Sítios Certos, Lugares Certos e o Resto

O mundo antes de capachinhos queixinhas.

Motherfrackers

MEC a fazer tiro ao meco. Bem-haja.