Sobre as origens da situação actual no Médio Oriente, já escrevemos aqui e não vamos repetir uma narrativa histórica que está nos livros e é do conhecimento geral.

Contudo, nesta época em que co-existem “verdades paralelas” (a época da pós-verdade), os factos históricos já não são apenas factos; são interpretações que variam conforme o ponto de vista do observador. Esta confusão - foi assim ou assado? - acirrada por uma radicalização que se tornou norma, é talvez a principal razão porque ninguém se entende, enquanto morrem milhares cuja opinião não tem qualquer influência na chacina.

Vem isto a propósito das afirmações feitas por Guterres na Assembleia Geral das Nações Unidas no dia 24 de Outubro. Vale a pena re-lê-las na íntegra:
“A situação no Médio Oriente está a tornar-se cada vez mais terrível. A guerra em Gaza está a escalar, sob risco de alastrar na região. As divisões estão a fragmentar sociedades. As tensões ameaçam explodir.
Num momento crucial como este, é fundamental ter princípios claros, começando pelo princípio fundamental da protecção e respeito pelos civis.
Condenei inequivocamente os horríveis e sem precedentes ataques de terror perpretados pelo Hamas em Israel, ocorridos a 7 de Outubro. Nada pode justificar o assassinato, a violência e o sequestro de pessoas ou os ataques com rockets contra alvos civis.
Todos os reféns devem ser tratados com humanidade e libertados imediatamente e sem exigências. E, com respeito, reconheço entre nós a presença de membros das suas famílias.

É importante reconhecer também que os ataques do Hamas não surgiram do nada.

O povo palestiniano foi sujeito a 56 anos de ocupação sufocante. Viram as suas terras continuamente devoradas e assoladas pela violência, a sua economia asfixiar, as suas casas demolidas e as populações deslocadas. As esperanças que tinham de uma solução política para a sua situação têm vindo a desaparecer.

Mas o sofrimento do povo palestiniano não pode justificar os terríveis ataques do Hamas. E esses terríveis ataques não podem justificar uma punição colectiva do povo palestiniano.

Até a guerra tem regras. Devemos exigir que todas as partes cumpram e respeitem as suas obrigações aos abrigo dos Direitos Humanos Internacionais. Assim como a preocupação constante na condução de operações militares para poupar civis e o respeito e protecção por hospitais e pela inviolabilidade das instalações das Nações Unidas, que hoje abrigam mais de 600 mil palestinianos.

O bombardeamento implacável de Gaza pelas forças israelitas, o número de vítimas civis e a destruição em larga escala de habitações continuam a aumentar e são profundamente alarmantes.

Manifestos o meu pesar e honto os colegas das Nações Unidas que trabalham para a UNWRA (agência da ONU para os refugiados palestinianos). Infelizmente, pelo menos 35 morreram durante ataques a Gaza nas últimas duas semanas. Devo às suas famílias e minha condenação desdes e de muitos outros assassinatos semelhantes.

A protecção dos civis é fundamental em qualquer conflito armado. Proteger os civis nunca pode significar usá-los como escudos humanos. Proteger civis não significa pedir que mais de um milhão de pessoas fuja para o sul, onde não há abrigo, nem comida, nem água, nem medicamentos, nem combustível, e depois continuar a bombardear o mesmo Sul.

Estou profundamente preocupado com as claras violações dos Direitos Humanos Internacionais que estamos a testemunhar me Gaza. Deixem-me ser claro: nenhuma das partes num conflito armado está acima dos Direitos Humanos.

Felizmente, alguma ajuda humanitária está finalmente a chegar a Gaza, mas é uma gota de ajuda num oceano de necessidades.
Além disso, os depósitos de combustível da ONU em Gaza chegam ao fim dentro de dias, o que significaria outro desastre. Sem combustível, a ajuda não pode ser tratada nem bombeada.

O povo de Gaza precisa de ajuda contínua que corresponda às enormes necessidades e esta deve ser entregue sem limitações.

Saúdo os nossos colegas da ONU e parceiros humanitários em Gaza, que trabalham em condições perigosas e arriscam as suas vidas para prestar ajuda aos mais necessitados. São uma inspiração.

Para aliviar o enorme sofrimento, tornar mais fácil e segura a entrega de ajuda e agilizar a libertação de reféns, reitero o meu apelo a um cessar-fogo humanitário imediato.

Mesmo neste momento de ameaça grave e imediata, não podemos perder de vista o único alicerce realista para uma verdadeira paz e estabilidade: uma solução de dois Estados.

Os israelitas devem ver materializadas as suas legítimas necessidades de segurança e os palestinianos devem ver concretizadas as suas legítimas aspirações a um Estado independente, concretizadas em conformidade com a resolução das Nações Unidas, Direito Internacional e anteriores acordos.

E, finalmente, temos de ser claros quanto ao princípio de defesa da dignidade humana.

Um tsunami de desinformação está a alimentar a polarização e e desumanização. Devemos enfrentar as forças do anti-simitismo, do fanatismo muçulmano e de todas as formas de ódio.”

Não foi um discurso longo, mas tocou todos os pontos importantes. Dei-me ao trabalho de o reproduzir aqui, pedindo ao leitor o trabalho de o ler, para que possa compreender bem os problemas que levantou.

A reacção de Israel, pela voz do seu embaixador, Gilad Erdan, foi para lá do que a diplomacia tradicional permite. Começou logo por pedir a demissão do Secretário Geral, uma atitude inédita em toda a história das NU e completamente fora das normas.

Depois de acusar Guterres de parcialidade, acrescentou que as Nações Unidas já não servem para nada. (Logo a seguir Israel cancelou os passaportes dos diplomatas da ONU, uma atitude igualmente inédita.) Acrescentou que a ONU, fundada no seguimento do Holocausto exactamente para impedir que se repetisse, em 1947 aprovou a constituição do Estado de Israel.

Uma das suas acusações, postada no X, é particularmente reveladora: "A afirmação de que os ataques do Hamas não surgiram do nada mostraram compreensão pelo terrorismo e o assassínio.”

Nestes comentários do embaixador, depois repetidos por várias autoridades israelitas e comentados favoravelmente pela comunicação social de direita, pode perceber-se o que irritou os israelitas de ultra-direita que actualmente formam o Governo do país.

(Entre parêntesis: é interessante como a situação dos judeus era uma causa da esquerda quando eram perseguidos pelos nazis, e tornou-se uma causa da direita quando são eles a perseguir os palestinianos. Just saying…)

O que irritou os israelitas foi a chamada para a situação dos palestinianos nestes 56 anos. Eles não gostam que se lembre do modo como perseguiram e despojaram os habitantes da terra para onde decidiram voltar. Essa perseguição e despojamento não é uma opinião do Secretário Geral; basta ir às páginas dos arquivos judaicos para ver que entre 1946 e 2023 morreram 20.981 israelitas e 91.361 palestinianos. A mesma fonte também nos diz que em 1946 viviam na Palestina 543.000 judeus e 1.267.037 palestinianos, e em 2023 contam-se 7.181.000 judeus e 2.614.000 palestinianos. Estes números, note-se, são o que dizem os próprios israelitas. Podemos facilmente avaliar que terão morrido muito mais palestinianos do que os israelitas dizem. E sabemos, porque é noticiado de vez em quando, que os colonatos judaicos têm lentamente despojado muitos indígenas muçulmanos das suas terras - na Cijordânia - enquanto encarceram outros no gueto de Gaza.

Como descrevi no meu artigo acima citado, os defensores da solução de dois Estados foram assassinados, e os actuais dirigentes israelitas não estão interessados a conceder aos palestinianos qualquer território. Se desaparecessem todos, melhor, como afirmou implicitamente o ministro Bezalel Smotrich uma vez que a nacionalidade palestiniana “é uma invenção”.

Outro ponto interessante nas palavras de Gilad Jordan é que a ONU foi construída por causa do Holocausto, o que não é uma espécie de “verdade paralela”. A ONU foi feita para acabar com as guerras e criar um fórum internacional em que os conflitos pudessem ser resolvidos por consenso. Quando acossados quanto ao extermínio dos palestinianos, os judeus não deixam de atirar à cara do mundo o Holocausto, como se o facto de terem sido vítimas os tenha tornado incapazes de ser carrascos…

Também está dentro desta lógica a afirmação de que Israel foi oficialmente reconhecida como país em 1947. É verdade, mas o reconhecimento dum país não implica autorização para eliminar os autocnes inconvenientes.

É um facto que Israel se encontra numa situação particularmente delicada; sendo um país, tem de obedecer às convenções internacionais de guerra e direitos humanos que assinou; mas o seu inimigo, o Hamas, é apenas um grupo terrorista que não obedece a nada, nem aos mais elementares direitos humanos. Levanta-se a questão ética de ser tão mau como os maus para acabar com eles.

A questão levanta-se, mas Netanyahu já afirmou que isso não vai ser levado em consideração. À medida que o tempo passa - a partir da data fatídica de 7 de Setembro, quando ocorreram as incursões infames do Hamas - e o número de vítimas civis em Gaza aumenta diariamente, o apoio da opinião pública internacional pela “justiça” israelita vai diminuindo exponencialmente. Começa a ser cada vez mais recordado como Israel tratou da questão palestiniana desde que os moderados dos dois lados - que defendiam a solução dos dois Estados - foram eliminados.

Doa a quem doer, Guterres tem razão quando diz que as barbaridades do Hamas não aconteceram num vácuo.