Tempo. O tempo por que passamos é diferente para todos. Muitos há que não podem ficar em casa e têm de continuar a trabalhar, sem paciência para quem se queixa de estar em casa. Outros ficam em casa e também continuam a trabalhar, enquanto filhos brincam à volta ou tentam ligar-se a professores que ensinam ao sabor dos caprichos da Internet. O certo é que ficar em casa tirou-nos o tempo quase todo. Ou misturou as horas do dia. Ou baralhou-nos os relógios. Também é certo que já passou um mês e pouco e até a isto nos vamos habituando, que o ser humano rapidamente arranja maneira de se acostumar a (quase) tudo, para o mal e para o bem.

Único. O tempo é uma palavra curiosa. Serve para muito. Em português, mistura o tempo que faz com o tempo que passa — e ainda o tempo que vivemos. Noutras línguas, as misturas são diferentes: sem ir muito longe, para um inglês, a mistura entre «time» e «weather» parecerá estranhíssima. Bem, o tempo que vivemos é único: aconteça o que acontecer, havemos de contar aos netos os tempos em que ficámos fechados em casa — ou não ficámos porque não podíamos. Os tempos em que os países pararam e a economia travou. Imagino que as memórias serão difíceis — principalmente as dos tempos que ainda nem começaram.

Vontade. Vontade de andar ao vento, de correr pelo campo — ou, mais realisticamente, de sentir as ruas, com as irritações, as buzinadelas, o estacionamento, o trânsito... Enfim, quando tudo acabar, a saudade passará ao primeiro semáforo, sei-o bem, mas a verdade é que as cidades vazias são tristes. Há quem as ache belas, mas essa beleza sempre a tivemos ao nosso alcance nas madrugadas de domingo. Há também quem lembre a redução tremenda da poluição — mas parece-me fraco consolo. É como felicitar um morto por já não precisar de ir ao médico.

  1. Esta letra serve para falar de aventuras, de mapas do tesouro, de jogos na Páscoa em que os miúdos corriam pela casa à procura de doces escondidos, depois de conversarem com os avós e tios em imagens instáveis. Uma letra que vale para falar dos livros e filmes e histórias e jogos que usamos para soltar a imaginação dos miúdos. E a imaginação lá continua, livre como se quer, até em jogos estranhíssimos como o Minecraft, onde o meu filho mais velho agora se entretém a criar casas, cidades e territórios feitos de pequenos cubos, mas onde vai vivendo para lá das paredes da casa. Ontem chegou a brincar com a prima, a mais de 2.000 km de distância, num mundo de Minecraft. Acabaram à batatada, como acontece muito nas brincadeiras dos miúdos (à batatada e a rir!). No outro dia ficou felicíssimo porque encontrou uma ovelha rosa, que parece ser rara naquele mundo (e neste, já agora). Ninguém disse que os pais tinham de compreender tudo o que os filhos fazem. E os filhos também nem sempre compreendem o mundo dos adultos: o Simão ainda não percebe como dez ovelhas criam ovelhinhas. Expliquei-lhe que, naquele mundo feito de cubos, eu também não fazia ideia como é que as ovelhas se reproduziam.

Zéfiro. A última letra não é fácil. Não é das mais comuns, não há assim tantas palavras a começar pelo Z, fica no lugar de honra final… Perguntei à Zélia, minha mulher, especialista nesta pequena letra desde que os pais lhe escolheram o nome. Propôs-me «zelar» — pelos filhos e pelos avós e por todos os que nos rodeiam. É uma belíssima hipótese. A parte mais infantil do meu cérebro propôs-me «Zorro», para terminar a sonhar com aventuras. Acabei por ir ver listas de palavras e os meus olhos repousaram no zéfiro e nessa vontade de voltar a sentir o vento na cara sem medo de vírus e outros monstros.

Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu último livro é o Almanaque da Língua Portuguesa.