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No dia em que fiz sete anos, 14 de abril de 1873, a minha mãe, Molly Walsh, vestiu-me a roupa de domingo e levou-me à Praça da União para tirar uma fotografia. É a única que existe da minha infância, onde apareço de pé junto a uma harpa com o ar espavorido de um enforcado, que se explica pelos minutos que devo ter passado sem respirar diante de uma caixa negra e pelo susto que apanhei com o clarão da lâmpada. Devo esclarecer que não sei tocar nenhum instrumento, a harpa era um dos poeirentos adereços teatrais do estúdio, juntamente com as colunas de papelão, os jarrões chineses e um cavalo embalsamado.
O fotógrafo era um homenzinho bigodudo de origem holandesa, que ganhava a vida com aquele ofício desde a época da febre do ouro. Nesse tempo, os mineiros que desciam das montanhas para depositar as suas pepitas de ouro nos bancos de São Francisco tiravam retratos para enviar às suas famílias quase esquecidas. Quando do ouro não restou senão a memória, os clientes do estúdio passaram a ser gente importante que posava para a posteridade. Nós não entrávamos nessa categoria, mas a minha mãe tinha as suas razões para tirar um retrato da filha. Mais por princípio do que por necessidade, regateou o preço com o artista. Que eu saiba, nunca comprou nada sem ter o gostinho de pedir um desconto.
– Já que estamos aqui, vamos ver a cabeça do Joaquín Murieta – disse-me ela, quando saímos do estúdio do holandês.
Do outro lado da praça, que dava acesso ao bairro chinês, comprou-me um bolo de canela, levando-me depois a uma taberna insalubre. Pagámos o bilhete e percorremos um longo corredor até às traseiras do estabelecimento, onde um sujeito com um ar tenebroso levantou uma pesada cortina e nos conduziu a uma sala de lúgubres cortinados, iluminada por círios de igreja. Ao fundo, via-se uma mesa tapada com panos negros e dois grandes frascos de vidro. Não me lembro do resto da decoração porque o pavor me paralisou. Enquanto eu tremia de medo, agarrada com as duas mãos à saia da minha mãe, ela parecia eufórica. No primeiro frasco, uma mão humana flutuava num líquido amarelado, e no segundo havia uma cabeça de homem com as pálpebras cosidas, os lábios retraídos, os dentes à mostra e os cabelos eriçados.
– O Joaquín Murieta era um bandido. Como o teu pai. De modo geral, é assim que acabam os bandidos – explicou-me a minha mãe.
Escusado será dizer que, nessa noite, tive pesadelos terríveis. Deu-me febre, mas a minha mãe considerava que, a menos que uma pessoa estivesse a sangrar, não havia necessidade de intervir. No dia seguinte, com o mesmo vestido e os malditos botins, que já tinham dois anos de uso em minha posse e me ficavam bastante apertados, levantámos a fotografia e fomos a pé até ao distrito elegante de São Francisco, onde nunca estivera. Ruas pavimentadas enroscadas nos cerros, casas senhoriais com jardins de rosas e arbustos podados, cocheiros de libré e lustrosos cavalos, e nem um mendigo à vista.
A minha existência decorria no bairro de La Misión, na multidão heterogénea e poliglota de imigrantes da Ale- manha, da Irlanda e de Itália, dos mexicanos, que sempre tinham vivido na Califórnia, e de um grupo considerável de chilenos que tinham chegado com a febre do ouro em 1849 e, várias décadas depois, continuavam a ser tão humildes como quando tinham imigrado. De ouro, nada. Se algo tinham conseguido nas minas das serras, os bancos que chegaram um ano depois tiraram-lho. Muitos regressaram às suas terras sem fortuna, mas com histórias fabulosas para contar, e outros ficaram, porque a viagem de regresso era longa e cara. Em La Misión, tínhamos fábricas, oficinas, lixo, cães sem dono, burros magros, roupa estendida e portas abertas, porque não havia nada de valioso para roubar.
Essa peregrinação com a minha mãe ao universo inalcançável da classe alta foi o meu primeiro vislumbre de que éramos pobres. Não me refiro à pobreza de passar fome no meio dos ratos, como a dos meus avós maternos na Irlanda, mas à modéstia de quem vive um dia de cada vez. Até então, não tinha reparado na existência de pessoas em melhor situação do que nós, pois não tinha contacto com elas, só as via ao longe quando ia com os meus pais ao centro da cidade, o que era raro. Os coches com cavalos reluzentes, as damas com exagerados vestidos vitorianos rodados, com franjas e rosáceas, os cavalheiros de cartola e bengala e as crianças vestidas de marinheiro eram seres de outra espécie. No nosso bairro, vivia gente trabalhadora, éramos todos mais ou menos iguais. Lá, a maioria das casas albergava uma ou duas famílias de crianças descalças, mulheres eternamente grávidas e homens alcoolizados que tentavam ganhar a vida em diversos ofícios. Em comparação com os nossos vizinhos, a minha pequena família era afortunada. Como dizia o meu respeitável padrasto, tínhamos trabalho, carinho e dignidade, não precisávamos de mais nada. Contávamos ainda com uma casinha decente e não tínhamos dívidas.
Não me atrevi a perguntar à minha mãe onde íamos, por isso segui-a, cerro acima e cerro abaixo, a aguentar as bolhas nos pés. Nesse tempo, Molly Walsh era uma jovem com um ar angelical, ou seja, com a expressão beatífica dos mártires das igrejas e uma voz cristalina de rouxinol, que ainda conserva e é enganadora, pois é forte e mandona. Nas raras vezes em que refere o meu pai, muda de voz e, em vez do seu tom habitual, algo lastimoso, cospe as palavras. Sem que ela o dissesse, adivinhei que aquela dolorosa caminhada até ao bairro dos ricos estava relacionada com ele.
Chegámos ofegantes a Nob Hill, no alto do cerro, com vista panorâmica para a cidade e para a Baía de São Fran- cisco. Parámos em frente à mansão mais imponente da rua, protegida por um gradeamento de ferro alto, coroado com pontas de flechas, através do qual vislumbrei um jardim maravilhoso com uma fonte de pedra que vertia água pela boca de um peixe. Ao fundo, erguia-se uma enorme casa cor de manteiga, com um alpendre de colunas e uma monumental porta de madeira escura ladeada por dois leões de pedra. A minha mãe disse que era um mamarracho de novos-ricos, mas eu fiquei boquiaberta; os palácios das histórias deviam ser assim. Ficámos vários minutos à frente do gradeamento, a recuperar o fôlego, enquanto a minha mãe limpava o suor do rosto e ajeitava o chapéu. Subitamente, antes de conseguir puxar o cordão da campainha, um homem de fato preto e colarinho engomado saiu de um dos lados da casa, atravessou a vasta extensão do jardim em direção a nós e dirigiu-se à minha mãe sem lhe abrir o portão. Acho que lhe bastou um olhar para avaliar com precisão a nossa classe social, apesar do esmero que ela tinha posto na nossa apresentação.
– Em que posso ajudar? – perguntou, em tom altaneiro, com um sotaque britânico tão cerrado, que mal o entendemos.
– Venho falar com o senhor Gonzalo Andrés del Valle – respondeu a minha mãe, tentando imitar a petulância daquele homem.
– Tem encontro marcado com ele?
– Não, mas vai receber-me.
– Lamento, mas está em viagem, senhora.
– Quando volta? – perguntou a minha mãe, perdendo o ânimo.
– Não lhe consigo dizer.
O homem abriu o portão, mas não nos mandou entrar, deixou-nos na rua. Senti que nos examinava da cabeça aos pés e imagino que tenha chegado à conclusão de que não representávamos uma ameaça ou um incómodo, pois adotou um tom um pouco mais amável.
– O senhor Del Valle vem de visita a São Francisco de vez em quando, mas vive no Chile – explicou o inglês, e acrescentou que a família não recebia visitas sem marcação prévia.
– Diga-me para onde lhe posso enviar uma carta. É muito importante.
– Deixe-a comigo, senhora...
– Senhora Molly Walsh – replicou ela, sem referir o seu apelido de casada, Claro.
– Vou certificar-me pessoalmente de que lhe chegue às mãos, senhora Walsh – garantiu-lhe o homem.
Ela entregou-lhe o envelope que continha a minha foto- grafia e o bilhete em que lhe apresentava Emilia, sua filha. Não seria a última carta que enviaria ao meu alegado pai.
Fui criada com a ideia de que o meu pai biológico era um chileno muito rico e eu tinha direito a uma herança que o destino me tinha roubado, mas que Deus, na Sua infinita misericórdia, poria ao meu alcance a seu tempo. A escassez económica do presente era um teste que o Céu me enviava para aprender a humildade, mas seria recompensada no futuro, desde que fosse obediente e virtuosa. A virtude media-se em virgindade e recato, pois nada ofende tanto a Deus como uma rapariga pouco ajuizada e descarada. Na missa, e ao rezar todas as noites de joelhos junto à minha cama, a minha mãe fazia-me pedir a Deus que aplacasse o coração dos nossos devedores e lhes perdoasse na medida em que pagassem as suas dívidas. Haveriam de passar vários anos antes de eu compreender que essa bizantina oração se referia ao meu pai.
Na verdade, a minha infância foi perfeita. A minha mãe mimava-me, mas vivia muito ocupada e não tinha tempo nem disposição para me vigiar, e o meu padrasto tinha a certeza de que a sua princesa era incapaz de partir um prato, pelo que também não me vigiava. Tinha razão, fui uma menina introvertida, viciada na leitura, solitária e sensível, que se entretinha sozinha e não dava problemas, até que o vendaval da adolescência me transformou numa harpia. Felizmente, essa fase não durou muito. A escassez a que a minha mãe se referia era irrelevante, pois ninguém à nossa volta tinha mais, e a hipotética herança era um conto de fadas, que tinha muito cuidado em não mencionar, pois teriam zombado de mim. Amedrontava-me a possibilidade de esse misterioso chileno, um bandido como Joaquín Murieta, aparecer um dia para me reclamar como sua filha e me levar para longe, porque a ideia de me separar da minha mãe me aterrorizava e porque o meu pai era Francisco Claro, a quem sempre tinha tratado por Papo, e mais ninguém. Era-o então e continuará a sê-lo sempre, ainda que não sejamos do mesmo sangue.
Molly Walsh, a minha mãe, nasceu em Nova Iorque, filha de imigrantes irlandeses que fugiram da fome da batata. Ao ouvir dizer que, na Califórnia, o chão era calcetado a ouro, o seu pai juntou-se às caravanas de pioneiros que, em 1849, cruzavam o continente de leste a oeste na esperança de enriquecer. Pelo caminho, morreu um dos seus filhos, que ficou abandonado numa pequena campa sem nome. Poucos meses depois de chegar à emergente e caótica cidade de São Francisco, a sua esposa faleceu de consumpção. Essa mulher, a minha avó, resistiu heroicamente aos terríveis meses de viagem porque tinha de velar pelos filhos que lhe restavam, mas a coragem e a vontade não foram suficientes para prolongar a sua existência na Califórnia, a terra de gente ambiciosa e rude onde foram parar, e um dos seus ataques de tosse sanguinolenta parou-lhe o coração. O viúvo, o meu avô, viu-se sozinho com os filhos numa cidade inclemente e compreendeu que, se tencionava cumprir o propósito de encontrar ouro, não conseguia cuidar deles. Levou o mais velho, que já tinha doze anos, para as serras, pôs o segundo a trabalhar sem salário numa fazenda e deixou Molly, de quatro anos, num orfanato fundado por três freiras mexicanas, com a promessa de que a iria buscar assim que tivesse a fortuna que ambicionava. Isso nunca chegou a acontecer.
Na infância, Molly era submissa e devota, parecia gostar do sofrimento. Assim mo descreveu o meu Papo, mas custa a acreditar, vendo-a agora transformada na guerreira que encabeça os protestos de rua e, armada com o seu rolo da massa, enfrenta por igual bêbedos, bandidos, polícias e outros que costumam armar confusão no nosso bairro. A pequena Molly passava tantas horas de joelhos, jejuava com tanto fervor e aceitava com tal resignação o escárnio e as piadas de mau gosto das colegas, que ficou com a alcunha de Santa Molly. As duas freiras mais jovens, mulheres simples, distinguiam-na de entre o monte de meninas, comovidas ante o possível milagre de terem no seu seio uma santa em gestação. Nos primeiros tempos, a madre Rosario, diretora daquela minúscula comunidade religiosa, não deu importância à devoção exagerada de Molly e à esperança louca das outras duas freirinhas; as suas pupilas eram meninas órfãs ou abandonadas que manifestavam frequentemente comportamentos estranhos, mas teve de intervir quando, aos onze anos, a rapariga começou a ter visões e a ouvir vozes. Isso já era demasiado. A madre Rosario considerava que a beatice estava bem para as mulheres ociosas, mas não tinha lugar ali, onde o amor a Deus se provava com trabalho. Concluiu que o limite entre as mensagens celestiais e a doença mental era muito ténue e dispôs-se a curar a santidade pela raiz com banhos de água fria e óleo de gerânio. Obrigou Molly a ingerir três refeições por dia, estritamente vigiada, para que engolisse e não fosse depois vomitar às escondidas, e pô-la a trabalhar no jardim, com pá e picareta, nas gamelas da lavagem, no forno do pão e no chão, com uma escova e lixívia. Entre os legumes com arroz de cada dia e o suor do trabalho pesado, a menina navegou com certa normalidade pelos anos difíceis da puberdade e da adolescência, mas manteve sempre a sua inclinação para o dramático. Como nunca teve notícias do pai nem dos irmãos, aceitou a ideia de que aquelas três freiras eram a sua única família. Estava tão ocupada, que lhe sobrava pouca inspiração para imitar os mártires do calendário, mas a sua vocação religiosa manteve-se intacta e, aos quinze anos, pediu para ser aceite no noviciado.
E foi assim que Molly Walsh teve a imensa felicidade de lhe raparem a cabeça como se fosse um preso e de vestir o hábito branco de pano áspero das noviças. Juntou-se ao pequeno grupo de mulheres entre as quais tinha crescido, decidida a entregar-se de corpo e alma à caridade. Teria preferido ir para um convento de clausura, algo verdadeiramente austero e bárbaro, um edifício de pedras geladas onde fosse permitido usar um cilício para castigar a carne, dormir no chão duro com um tronco como almofada e jejuar até ao desmaio, mas teve de se resignar a uma existência mais amena no casarão de adobe do orfanato, onde os catres de tábuas tinham colchões de crina de cavalo e a comida era simples, mas abundante. A madre superiora, cujo bom apetite se manifestava no contorno da sua cintura e nos rolos das suas ancas, que o hábito não conseguia disfarçar, era partidária de uma boa alimentação, pois não se podia servir o Senhor sem forças nem boa saúde.
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