Poucas horas tinham passado sobre o anúncio de que dois “mísseis ninja” de tipo Hellfire (fogo do inferno) tinham eliminado em Cabul o há 21 anos most wanted terrorista, Ayman al Zawahiri, cofundador da Al Qaeda, quando tanta gente por todo o mundo descarregou no telemóvel a aplicação Flightradar24 para seguir o voo Spar19, que transportava a speaker Nancy Pelosi, em viagem para Taiwan.
Sinal dos tempos: o ataque mortal ao chefe da Al Qaeda, inimigo público n.º1 das duas últimas décadas, rapidamente passou para segundo plano na atenção mundial, perante a temerária viagem de Pelosi.
Tudo aconteceu a três meses de os Estados Unidos escolherem nas eleições midterm que as sondagens antecipam muito difíceis para os democratas e para o presidente Biden, em risco de perda da maioria para governar. Será que esta imagem de força do atual topo do poder democrata corresponde a uma estratégia para tentar inverter essa correlação de forças nos EUA que está a favorecer, embora com tudo ainda muito incerto a oposição republicana?
A grande acusação que desgastou os democratas no último ano e meio é a de falta de liderança e de autoridade.
Aí estão eles, através de Biden e Pelosi, a restaurar algo da autoridade perdida.
Ao dar a ordem para abater Ayman al Zawahiri, Biden trata de superar a imagem humilhante da caótica retirada americana do Afeganistão que faz agora um ano.
Ao aterrar em Taiwan, Pelosi quis mostrar que a democracia ocidental não vacila perante a ameaça de líderes hipernacionalistas de regimes autoritários como é a China de Xi Jinping.
O n.º1 chinês tinha estado na semana passada ao telefone com Biden ao longo de mais de duas horas. Foi relatado que concordaram em cooperar no combate às alterações climáticas e também juntar forças no campo da saúde. Mas também foi relatado por Pequim que Xi avisou, a propósito das notícias da viagem de Pelosi a Taiwan que isso seria “brincar com o fogo”. Já nesta segunda-feira, a porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros de Pequim reiterou que o Exército Popular de Libertação não ficará de “braços cruzados” e adotará “medidas contundentes” se a n.º3 no sistema de poder político nos EUA viajasse a Taiwan.
Apesar das ameaças, Pelosi viajou. Disse que ia a Taiwan para “honrar o compromisso da América com a democracia num momento em que o mundo se divide entre autocracia e democracia”.
Esta visita de Pelosi obviamente foi concertada com Biden, embora o presidente se tenha colocado fora da questão. Disse que a speaker da Câmara dos Representantes tem autonomia para fazer o que entender. Biden quis preservar alguma margem de manobra diante de Xi.
É essencial que a rivalidade entre EUA e China não leve as duas potências a tornarem-se adversários militares. Já ficou demonstrado, por exemplo na negociação sobre o clima, que todos ganhamos quando cooperam.
Nestes dias, pelas ações em Cabul e em Taiwan, Biden e a liderança democrata nos EUA terão recuperado alguns pontos na taxa de aprovação interna na América, ao demonstrarem determinação e coerência.
Mas o mundo atual exige líderes que também tenham apurada inteligência e sensibilidade.
O fim de Zawahri é um êxito no combate ao terrorismo fundamentalista, que continua ativo e perigoso como é constatado todos os dias na África Central.
A visita a Taiwan, corajosa pela defesa dos princípios e da democracia no confronto com a ditadura, tem o risco de juntar na hostilidade ao Ocidente as duas potências que lhe são mais adversárias, Rússia e China, ambas com enormes arsenais nucleares.
Vale ter em conta o que António Guterres oportunamente lembrou esta semana na abertura de uma conferência de revisão do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP): “o mundo está "a um mal-entendido ou a um erro de cálculo da aniquilação nuclear".
Um porta-voz da diplomacia chinesa ameaçou que os EUA “terão de pagar o preço pelo ataque à soberania da China”.
Mas o calendário recomenda a Xi Jinping que seja paciente: ele procura um inédito terceiro mandato no congresso do Partido Comunista Chinês, já em outubro. A economia chinesa está com o mais baixo crescimento dos últimos anos, o povo está zangado com a austeridade dos confinamentos pela Covid-19. O cenário não se afigura propício para que Xi alinhe numa aventura com os falcões militares.
Seria uma catástrofe para o mundo se Xi ousasse fazer de Taiwan uma Ucrânia do Pacífico. É improvável, mas a ameaça existe.
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