"Então o que é que achaste?".
"Meh".
"E o gajo nem disse obrigado, nem boa-noite".
Estas foram as primeiras palavras que ouvi quando as luzes se acenderam na Altice Arena e a fila onde me encontrava desmobilizou em direcção à saída.
Ganhei naquele momento uma aposta que tinha feito comigo própria durante o concerto. A de que muita gente sairia da sala a preocupar-se com minudências.
Verdade. Bob Dylan não disse boa-noite, nem obrigado. Também não interrompeu a meio para saudar politicamente a audiência no tradicional "Olá, Lisboa", que leva invariavelmente as salas de espectáculo ao rubro porque "o gajo" que está em palco, ou gaja, ou gajos, sabem dizer olá e Lisboa.
E o quê?
Era mesmo isso que estavam à espera de Bob Dylan?
Eu não — e por isso, "o gajo" esteve simplesmente como eu esperava que estivesse, hoje ou há 30 anos quando o comecei a ouvir. Porque só quem na realidade não conhece assim tanto, ou não gosta assim tanto, poderia estar à espera de outra coisa.
O facto de não ser crítica de música liberta-me de ter de escrever grandes verdades universais sobre o concerto desta quinta-feira. Na sala — esgotada — estavam de certeza pessoas bem mais qualificadas para a crítica musical do que eu — espectadora-admiradora do agora também Nobel, ontem posta no papel da jornalista que ali está para contar o que viu. Mas contar o que viu em alguns concertos assemelha-se vagamente a dizer muito pouco ou quase nada. Contar que começou quase pontualmente, que fez dois encores, que evitou os clássicos, que trouxe outros em versão não tão clássica é dizer pouca coisa sobre um concerto que é feito para outra coisa. É feito para ser escutado. É feito para sair da sala e nos levar a tantos sítios, dos que existem mesmo ou apenas na nossa imaginação e história. Bob Dylan não é um "animal" de palco, essa expressão tão cara do showbiz, não é um entertainer, não está ali para ser nosso amigo e sair em ombros. "Why try to change me now", cantou ele num dos momentos mais bonitos e essa é mesmo a pergunta certa para os órfãos da noite de ontem.
Ele é o "gajo" que na realidade não canta - sopra as palavras, engole as palavras, dobra as palavras, atira-nos as palavras. Quem andou entretido há uns tempos na discussão sobre "o gajo" ter ganho o Nobel da Literatura podia também ontem ter percebido isso. Mas estas palavras dançam, e talvez por isso fazem-nos dançar. Ou embalam, e talvez por isso fazem-nos embarcar em várias viagens onde o ponto de partida até pode ser o dele mas o de chegada é generosamente o nosso. E ele ali está, aquele homenzinho impávido, por vez até hirto, atrás do piano, ora sentado, ora em pé, protegido na sua trincheira mas que em momento algum passa a impressão de ter medo de dar o corpo à bala. Porque não tem — e sim, a história do "gajo" mostra isso mesmo.
Uma voz intacta, uma certeza científica na palavra e na escala e um som ontem irrepreensível na Altice Arena. Uma banda que nos faz acreditar que nunca fez outra coisa na vida do que interpretar o que está na pauta mesmo que a pauta conserve a beleza de algo que podia ter acabado de ser inventado. E ele ali, o homenzinho que não veio para dizer olá, fazendo o que veio fazer, sem mais, sem menos.
O que Bob Dylan trouxe à Altice Arena tem muito pouco a ver com os dias de hoje — mas, dito isto, são os dias de hoje que estão fora do sítio, pelo menos durante aquelas quase duas horas. A seriedade com que aquela cerimónia é executada é muito pouco compaginável com a voracidade de mais uma foto, mais um vídeo, mais uma selfie. De tal forma que até os aplausos, a certa altura, pareciam contidos - como se interrompessem alguma coisa.
Numa sala cheia, um palco pensado para ser íntimo quase que nos conseguia enganar e fazer esquecer que éramos nós e mais 18 mil. Na realidade, não é bem assim — e talvez essa tenha sido a única desfeita da noite de ontem. A de sabermos que aquelas palavras, aquela música e aquele "gajo" deviam poder ser ouvidos num clube onde estava ele, a banda, nós e mais uma dezena de pessoas que amamos ou com quem gostaríamos de trocar dois dedos de conversa sobre coisas triviais ou importantes. Um sítio à parte, de onde pudéssemos sair com vontade de fazer qualquer coisa, não precisava de ser mudar o mundo, só fazer qualquer coisa.
Depois do concerto de Bob Dylan em Lisboa, em frente ao centro comercial Vasco da Gama, juntou-se uma pequena multidão em volta de um músico de rua que tocou êxitos que o "verdadeiro" artista deixou na gaveta (e bisou alguns que foram interpretados). Foi uma espécie de after party, com pessoas a cantar em coro, a dançar de cerveja na mão com a "estrela" da rua a receber imensos aplausos.
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