1. País-irmão? Quantas vezes em Portugal esta expressão foi gasta a falar do Brasil? E o carnaval, o Jorge Amado, o Caetano, o Chico? Quantos coliseus na vida de tantos portugueses? Quantas cidades maravilhosas? Quantas amazónias? Tudo isso faz parte do que está em perigo no Brasil. Começando pela vida, literalmente.
País-irmão não existe, faz-se todos os dias. Muitos voluntários em Portugal estão já a organizar-se em grupos de trabalho, porque amam o Brasil, e não o vão deixar à mercê de um fascismo indigente. Mas é essencial que vários tipos de poder em Portugal também se envolvam, governo, parlamento, câmaras, fundações, universidades, instituições culturais, media, empresas. Todo o apoio será pouco; para quem está no Brasil, e para quem vai sair.
2. Cada um pode ajudar no que melhor conhece. Vou focar-me aqui em três áreas, cultura, educação e media. Diariamente, chegam sinais de ataques em todas elas.
Começando pela cultura, já há listas de artistas a abater, por não apoiarem o poder eleito. Não só a ideia é acabar com o Ministério da Cultura, como interferir nos SESC, uma rede de centros que formam públicos e dão trabalho a artistas por todo o Brasil. Os anos de Gilberto Gil/Juca Ferreira à frente do ministério são um legado incrível, que chegou a milhões nunca antes envolvidos. A este apoio público à arte, o novo poder chama “mamatas” e repete que vai acabar com elas. Acresce que o Brasil está numa crise económica bárbara, haverá ainda menos dinheiro para ir ao cinema, ao teatro, comprar livros. Livrarias como a Saraiva ou a Cultura estão a fechar. As editoras, em recuo. Portanto, mais do que nunca os criadores brasileiros precisarão de apoio internacional. De encomendas, convites, bolsas, residências, parcerias, concursos, fundos, toda a espécie de incentivos financeiros ou logísticos que lhes permitam continuar a trabalhar, a criar, no Brasil e fora. E a resistir a pressões, à censura que já se declara.
3. Censura e cortes na educação, também. O novo poder já anunciou intenção de interferir no conteúdo do próximo ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). Vai tirar financiamento público às universidades. Desconfia da pesquisa na área das humanidades. Defende que “o Brasil é um país conservador”, que não deve ter “ideologia de género” nem “comunistas” no ensino. Um país onde há apelos para os alunos vigiarem os professores, quem não apoia o poder é inimigo, e Deus está acima de tudo. Até o slogan da ditadura foi recuperado: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Tudo parece empurrar para duas hipóteses, estar com o poder ou ir embora. Os estudantes e professores brasileiros precisarão, pois, de apoio internacional extra para estudo, graduação, pós-graduação, trabalho.
Há um mês, entre o primeiro e o segundo turno da eleição brasileira, estive num congresso nos EUA com 200 académicos que estudam literaturas de língua portuguesa, muitos deles autores brasileiros. E já se debatia uma rede de ajuda académica. Antes mesmo de ficar confirmada a eleição de Bolsonaro a ideia já era: temos de nos preparar para todos aqueles que vão vir, criar oportunidades, ajudas.
4. Finalmente, os media. Jornalistas estão a ser despedidos em catadupa no Brasil. Órgãos de comunicação vão adaptar-se ao novo poder, já estão a mudar. Dentro da grande imprensa tradicional brasileira há alguns bons jornalistas que continuam a lutar contra a corrente. Outros meios, muito diferentes entre si (“El Pais Brasil”, Agência Pública, Mídia Ninja), também quebram a hegemonia. Mas o clima de sufoco vai adensar-se, somado ao estado da economia. E as redacções em Portugal debatem-se com os seus próprios problemas, óptimos jornalistas estão sub-empregados ou desempregados, não será fácil dar emprego a uma leva de jornalistas brasileiros. É preciso construir outras soluções. Se as redacções estão à beira de um esgotamento, continua a faltar um jornal mais à esquerda em Portugal. Há regiões que não estão preenchidas, espaços por fazer, sites por criar. O online pode reforçar a democracia, com gente preparada para os assuntos, de facto, não tem de ser o abismo. E aqui entram também fundações, instituições culturais, cursos de comunicação, mecenato, para formação e apoios. A Gulbenkian, que criou recentemente uma bolsa para trabalhos de jornalismo de investigação, teria meios para isso, um apoio específico a projectos que incluíssem também brasileiros, ou o Brasil.
5. Mas na cultura, na educação ou nos media, o ponto decisivo é que todo o tipo de poderes em Portugal encarem esta emergência como também sua, por tudo o que o Brasil representa para Portugal, e por um compromisso básico com a liberdade.
Entre as redes de voluntários que se articularam para apoiar brasileiros há uma consciência clara de que tudo isto se liga à ascensão internacional de uma extrema-direita, e que será preciso uma frente ampla para lidar com ela. Era bom que em Portugal quem tem poder, político ou outro, e se considera democrata, lesse os acontecimentos no Brasil como parte de um risco muito mais alargado, e em curso.
6. A terminar, dois pontos em relação à comunidade brasileira em Portugal que votou por larga maioria no novo poder.
Primeiro, não pode haver qualquer retaliação seja em relação a quem for. Todas as sugestões de deportação, ou de “vai para a tua terra” se transformam em xenofobia, mesmo quando o que as move inicialmente é uma indignação anti-xenófoba.
Segundo, pelas mesmas razões, não deve ser tolerada a esta comunidade qualquer manifestação homofóbica, misógina ou discriminatória. Tudo isso é crime, tem de ser punido, e é bom que os brasileiros residentes em Portugal o saibam, já que muitos parecem detestar socialistas, comunistas e esse outro papão que é a “ideologia de género”. Na verdade, alguns parecem nem saber que a democracia onde se instalaram tem um governo viabilizado por socialistas e comunistas, e legalizou o casamento gay há anos.
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