Não se pode falar do Brasil de hoje sem lembrar a época que precedeu a Operação Lava Jato, iniciada em Março de 2014. É verdade que o pano de fundo, histórico e nacional é um cenário de corrupção generalizada. A corrupção existe em todos os países e, pela sua própria natureza dissimulada, é difícil de medir. No Índice de Corrupção da Transparency Internacional, o Brasil figura em 79º lugar numa lista de 176 países (sendo o menos corrupto a Dinamarca e o mais corrupto a Venezuela). No entanto, quem vive no país, mesmo não sabendo como será viver no Sudão (outro do grupo dos piores), tem a perfeita noção de que a corrupção é generalizada a todos os níveis, desde o polícia que recebe para perdoar uma multa ao funcionário de cartório que cobra para despachar um documento. Pagar “por fora” (a “propina”) não é uma pergunta que se coloque perante uma autoridade; a dúvida é “quanto custa”.

Existe uma aceitação da corrupção como um facto da vida e, até, uma maneira expedita de resolver problemas. Mas há também uma noção intuitiva de quando se pode cobrar para facilitar uma situação e a pequena corrupção funciona sem grandes dramas. Estou a lembrar-me, por exemplo, e entre tantas outras situações, do dono de um restaurante a quem perguntei se os empregados roubavam. “Roubam. Eu sei que eles roubam e eles sabem que eu sei. Mas deixo-os roubar um pouquinho e eles também sabem qual é o pouquinho que eu permito". Uma espécie de pacto de regime.

É mentira que todos as pessoas susceptíveis de serem corrompidas sejam corruptas. Há, felizmente, uma percentagem pequena mas significativa que não se deixa corromper. Por ética, por motivos morais e religiosos, ou por medo.

É verdade que, subindo no aparelho de Estado, ou na dimensão das empresas, as negociações são mais complexas e maiores os valores propostos ou exigidos. As comissões, propinas, avenças e todas as outras figuras jurídicas de corrupção podem chegar aos milhões, proporcionalmente ao volume do negócio. O dinheiro da corrupção é guardado em contas no estrangeiro, em compartimentos secretos e por vezes em simples malas, como foi o caso dos 51 milhões de reais (quase quatro milhões de euros) encontrados em notas num apartamento do ex-ministro de Integração Nacional de Lula da Silva, Geddel Vieira Lima. Este político em concreto pertencia ao MDP, pois os governos brasileiros, pela necessidade de fazer coligações de vários partidos, chegaram a ter 39 ministros com pastas mirabolantes.

Por vezes é o corrompido (sujeito passivo) que sugere quanto quer, outras é o corruptor (sujeito activo) que adianta quanto está disposto a pagar para resolver a questão. Há o caso do político de Minas Gerais que não se terá recandidatado porque queria manter-se honesto e, segundo ele, “estão a chegar ao meu preço”. Esse não ficou para a História ...

Há o caso gritante de Ademar de Barros, Governador de São Paulo (1947-51 e 63-66) cujo slogan era “rouba mas faz”.

É mentira que todos os políticos e funcionários do aparelho de Estado sejam desonestos. Sobre os presidentes Tancredo Neves (1985) e Itamar Franco (1992-95) nunca se ouviram suspeitas – para falar dos mais recentes. Mas é verdade que mesmo no topo da escala, estadual ou nacional, sempre houve negociatas. Há o caso gritante de Ademar de Barros, Governador de São Paulo (1947-51 e 63-66) cujo slogan era “rouba mas faz”. Chegou a ficar em terceiro lugar nas presidenciais de 1955 e 1960 e até deste lado do Atlântico a frase ficou conhecida.

É verdade que durante décadas (essencialmente a partir de 1950) toda a América do Sul, e especificamente o Brasil, foi alvo de um permanente e abrangente controle político e económico por parte dos Estados Unidos. Através das suas estruturas oficiais, para-oficiais e particulares, como a CIA, embaixadas, agências de ajuda, programas culturais e empresas americanas com interesses no país, os EUA exerceram uma influência enorme, por vezes nefasta e violenta, na orientação do país. (Também é verdade que esse quadro se modificou significativamente a partir 2001, quando os norte-americanos passaram a considerar que os movimentos terroristas internacionais eram a principal ameaça aos seus interesses e deixaram de se preocupar com o “perigo comunista” na América do Sul. Prova disto é a permanência de regimes de esquerda em vários países do subcontinente.)

Esta influência norte-americana e as enormes desigualdades sociais que permanecem endémicas no Brasil proporcionaram uma forte corrente de esquerda e antiamericana, especialmente entre os intelectuais, professores universitários, artistas e operariado urbano. O comunismo puro e duro não é compatível com o jeitinho e laissez faire dos brasileiros; apesar da violência urbana, um regime autoritário não seria aceite pela generalidade da população. Isso viu-se nas duas ditaduras, a de Getúlio Vargas em 1930-51, e a militar  em 1964-85. Mas Cuba continua a ser vista como um farol (sobretudo porque fez frente aos Estados Unidos no período da Guerra Fria) e em geral defendem-se os paradigmas das várias nuances de esquerda. Contudo, as classes média e média alta são predominantemente neoliberais.

É verdade que vitória do PT nas eleições de 2003 se apoiou num enorme capital de esperança da maioria dos brasileiros

É mentira que a corrente reaccionária e antiliberal se tenha extinguido com o fim da ditadura militar. Não está localizada num partido – embora haja partidos e políticos ostensivamente de direita, mas a força a levar em consideração, e que tem crescido exponencialmente, são os chamados evangélicos. Distribuídos por vários partidos e com forte penetração nas classes mais pobres. Segundo a Datafolha, 29% dos brasileiros declaram-se evangélicos, percentagem que chega aos 50% na região mais desenvolvida que inclui o Rio e São Paulo. É graças aos evangélicos que a IVG e os casamentos entre pessoas do mesmo sexo ainda são ilegais. Embora tenham uma postura de direita populista, são pragmáticos: apoiam quem estiver no poder, a troco de manter os seus privilégios. E quem está no poder não os hostiliza, porque precisa do apoio.

É verdade que vitória do PT nas eleições de 2003 se apoiou num enorme capital de esperança da maioria dos brasileiros. Luís Inácio Lula da Silva, um operário nordestino quase analfabeto, mas com um enorme carisma, prometia essencialmente acabar com a corrupção e os privilégios e dar melhores condições de vida e educação aos mais pobres. Mas também é verdade que, já na campanha para as presidenciais, Lula começou a diluir ou ignorar as propostas mais radicais de esquerda, como as nacionalizações e a espoliação fiscal dos mais ricos. Entre as primeiras medidas do seu governo, para além dos programas de auxílio aos mais necessitados (como a Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida), estiveram incentivos fiscais para as pequenas e médias empresas, enquanto extra-oficialmente se tranquilizavam os bancos e as grandes empresas. Na realidade a actuação do PT pode considerar-se como de centro esquerda, mantendo simultaneamente boas relações com o patronato e incentivando movimentos populares, alguns dos quais, como o Movimento dos Sem Terra, se tornaram autênticas milícias.

É verdade que, em termos económicos, os governos PT, partindo das reformas fundamentais feitas pelo governo anterior de Fernando Henrique Cardoso, desenvolveram o país, tiraram da pobreza 19,5 milhões de brasileiros e mais de 35 milhões ascenderam à classe média. O rendimento dos 5% mais pobres cresceu 137% entre 2001 e 2012, enquanto o dos 5% mais ricos, apenas 26%. Mas é mentira que estes programas tenham erradicado a pobreza e a violência no país, assim como tenham resolvido as assimetrias entre estados.

Lula, sem dúvida o presidente mais popular de sempre, reelegeu-se novamente e em 2011, não podendo constitucionalmente recandidatar-se, colocou na presidência Dilma Rousseff. Tudo parecia caminhar maravilhosamente até ao momento em que a Procuradoria Geral da República de Curitiba iniciou um processo de corrupção a que a Polícia Federal chamou da Lava Jato, por ter começado pela investigação de um posto de lavagem de automóveis. (No sistema judicial brasileiro, os procuradores-gerais dos estados têm autoridade para abrir processos a nível nacional.) A Procuradoria, dirigida pelo juiz Sérgio Moro, utilizou um método muito expedito de investigação baseado, segundo o próprio Moro, na actuação da justiça italiana na Operação Mãos Limpas. O principal instrumento usado pelos juízes é a chamada “delação premiada” (o equivalente em Portugal, menos radical e menos eficaz, é o “estatuto do arrependido”). Partindo dos mais pequenos prevaricadores – o elo mais fraco – os juízes foram subindo na cadeia da corrupção, conseguindo delações premiadas arrasadoras a troco de substanciais reduções de pena.

É mentira que a delação premiada (um instrumento muito discutível em termos éticos mas extremamente eficiente em termos práticos) seja a única prova usada pela justiça; a partir da denúncia, é preciso encontrar outros meios de prova que corroborem a delação. Os procuradores têm avançado cuidadosamente – mais cuidadosamente à medida que sobem na cadeia do poder...

As investigações dos procuradores – não só de Curitiba mas também de outros estados – focam-se num conjunto de crimes: corrupção activa e passiva, formação de quadrilha, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, organização criminosa, obstrução de justiça, manipulação de divisas e diversas vantagens obtidas de modo fraudulento. Até à data foram condenadas mais de cem pessoas, havendo centenas em prisão preventiva e outros tantos com processos instaurados. Reina o terror na classe política de todos os quadrantes, ao mesmo tempo que há tentativas a todos os níveis de travar ou emperrar as investigações.

É mentira que a acção da Justiça tenha uma cor política – de direita, segundo o PT e os partidos de esquerda. Até agora não existe qualquer prova dessa parcialidade, uma vez que têm sido indiciados políticos de todos os partidos que estiveram numa situação de poder nas últimas décadas. (Os políticos fora do poder não podem, obviamente, aproveitar-se das oportunidades de corrupção que o poder dá.)

É mentira que o Brasil se esteja a tornar um estado justicialista, como também acusam os defensores do PT. “Estado justicialista” significa uma democracia em que o poder judicial tem preponderância sobre os poderes executivo e legislativo, o que não é o caso. Aliás o próprio poder judicial está dividido: o Supremo Tribunal Federal, com uma maioria dos juízes nomeada pelo PT, e onde são visíveis interesses pecuniários e outros interesses que se adivinham, tem seleccionado os processos que lhe chegam de uma forma incoerente, que não denota unidade de propósitos; certos processos arrastam-se há anos, enquanto outros são tratados com grande celeridade. A luta contra a corrupção, num país minado por ela a todos os níveis, é errática e sofre constantes avanços e recuos. Como é habitual em todos os países do mundo, os acusados de crimes afirmam sempre que há motivações politicas e não judiciais para serem “perseguidos”.

Voltando à cronologia dos acontecimentos, à medida que as 47 fases da Operação Lava Jato se desenvolviam – com a extracção de certidões que originavam novos processos – ficou claro perante o público que a classe política está extensivamente envolvida em esquemas de corrupção, abrangendo todos os partidos. Há ministros, parlamentares, governadores estaduais e presidentes de câmara envolvidos, além de funcionários superiores e inferiores.

É verdade que o PT tem sido mais atingido, porque esteve no poder nos últimos 15 anos e porque, aparentemente, levou a corrupção a níveis nunca vistos e a todas as áreas da governação. Só para dar um exemplo: em 2006, Petrobrás comprou 50% da refinaria de Passadena, no Texas, por 360 milhões de dólares à belga Astra, que a tinha comprado em 2005 por 42,5 milhões. Posteriormente a estatal brasileira adquiriu a totalidade da refinaria, acabando por gastar mil e dezoito milhões de dólares numa unidade sem interesse (não refina o tipo de petróleo produzido no Brasil). Em 2017 tentou vendê-la, sem sucesso, por 170 milhões. Aquando da compra a presidente da Petrobrás era Dilma Rousseff, que depois viria a ser a sucessora de Lula na presidência.

Mas é mentira que o PT seja o único atingido. PSDB e PMDB, dois partidos de charneira da República, que têm estado presentes em todos os governos desde o fim da ditadura militar, também viram os seus dirigentes indiciados, acusados, ou pelo menos fortemente suspeitos práticas ilícitas.

Por falar em Dilma, é verdade que o seu impeachment foi um golpe engendrado para colocar Michel Temer na presidência. A acusação a Dilma, a chamada “pedalada fiscal” é um processo de gestão que tem sido usado por todos os governos do país. Também é verdade que não existem processos de corrupção contra Dilma. O seu papel na Petrobrás nunca foi esmiuçado.

É mentira que exista uma “conspiração de direita” para condenar Lula e destruir o PT

É verdade que os brasileiros vivem a constante desilusão de verificar que, afinal de contas, não há políticos, à esquerda, ao centro e à direita, que não estejam envolvidos na corrupção, ao mesmo tempo que ficam a saber que instituições de referência têm sido usadas para encher os bolsos de corruptos (Petrobrás) ou apoios ideológicos que não beneficiam a população (Banco Nacional do Desenvolvimento Económico e Social - BNDES). O BNDES, que deveria investir em mega infra-estruturas de interesse nacional – como a chamada “transposição” da bacia hidrográfica do rio São Francisco, até hoje inacabada e com uma derrapagem orçamental de 171% – tem aplicado milhares de milhões em projectos em países estrangeiros com governos amigos do PT – como é o caso do porto de Mariel em Cuba ou dos dois mil milhões investidos a fundo perdido na Colômbia. Por outro lado, o PT beneficiou indevidamente grandes empresas “capitalistas” (Odebrecht) e financiou a expansão de outras (Friboi) a troco de enormes "propinas" para o partido.

É mentira que exista uma “conspiração de direita” para condenar Lula e destruir o PT, porque não existe uma “direita” organizada, publica ou discretamente, para efectuar essa conspiração. Há partidos abertamente de direita, até de extrema direita (PSL, de Bolsonaro) e grupos de interesses de direita, até uma franja do eleitorado de direita, mas não têm coordenação nem massa crítica. Bolsonaro, um dos poucos políticos sobre os quais não pesa a suspeita de corrupção, é um militarista radical, que defende a pena de morte e a tortura. Tem vindo a subir nas sondagens devido ao desespero dos brasileiros com a incapacidade do sistema de se regenerar, mas não se espera que ganhe uma eleição nacional.

Também é mentira que exista uma “conspiração da CIA” para destruir o PT. Por um lado, o PT teve o cuidado de não prejudicar os interesses das empresas norte-americanas, apesar do seu discurso nacionalista. Por outro lado, a CIA não precisou de desestabilizar o PT, pois ele fê-lo sozinho. Não que a CIA não continue a actuar contra posições antiamericanas, contudo, como disse atrás, a América do Sul deixou de ser vista como o maior “perigo”. Os americanos já perceberam que os regimes de esquerda acabam por evoluir, como Daniel Ortega na Nicarágua, ou caminham para o suicídio, como Maduro na Venezuela. Cuba continua a ser o inimigo, mas passou a ser mais uma chatice do que uma ameaça.

É verdade que a luta política, tanto no Senado como no Judiciário, tem sido extremamente desgastante para a moral do país, que não vê nenhum politico suficientemente idóneo ou competente para ser o próximo Presidente da República. As mudanças de posição dos políticos obedecem a jogos de interesses obscuros e alianças espúrias que dificilmente são compreensíveis para o vulgo.

As figuras intelectuais que sempre apoiaram o PT (como Chico Buarque) recusam-se a fazer a auto-crítica do partido e não se conseguem libertar da mentalidade esquerdista e anti-americana que lhes deu prestígio na época da ditadura militar. Também ainda vêem o PT como o grande vencedor contra o “capitalismo neo-liberal” .

Uma auto-crítica e limpeza nas forças de esquerda seria a única maneira da esquerda recuperar o poder e a confiança da opinião pública. Mas não se vê tal movimento. Enquanto isso, as forças conservadoras evangélicas vão ganhando essa confiança com um discurso moralista. É o caso, por exemplo, do Rio de Janeiro, onde depois de um governador extraordinariamente corrupto, Paulo Cabral (PMDB) e presidentes da câmara suspeitos de corrupção, foi eleito edil da cidade o evangélico Marcelo Crivella.

Não há fim à vista para a situação actual. Não se sabe se a justiça prevalecerá, ou os jogos de interesses a tornarão inócua. Embora os intelectuais continuem a ver a disputa pelo poder como uma questão esquerda/direita, na realidade o que está em jogo é a manutenção de um mínimo de moralidade na coisa pública. O perigo não é o Brasil converter-se numa república justicialista, mas sim descambar numa república evangélica.

Nota: Porque este é um tema que extrema posições tanto no Brasil como em Portugal, acrescento uma nota em jeito de declaração de interesses. Trabalhei no Brasil como jornalista por dois períodos, num total de dez anos de permanência, tenho família lá e acompanho diariamente os acontecimentos, quer através da comunicação social, quer através da opinião de amigos de todas as cores políticas. A minha opinião é fundamentada nessa vivência.