Houve tanto consenso na condenação de Harvey Weinstein que eu não me senti especialmente motivado para adensar um dado adquirido. Estive errado, admito, pois a consonância num assunto não lhe retira relevância, e este caso merece todas as reflexões possíveis. É que os assédios de Weinstein, sendo paradigmáticos duma cultura abusiva (que, com maior ou menor exterioridade, sempre existiu) não podem ser o único paradigma nesta história. Também as condenações generalizadas do caso, as vozes que se levantaram para denunciar e reprovar, têm que se constituir como a nova normalidade, a decência posta em prática - um novo paradigma.

Não sei se pode chamar-se a isto ironia, mas custa-me ignorar que o rosto da polémica seja um rosto tão bexigoso. A cara grotesca dum costume grotesco. Para a posteridade provavelmente falar-se-á deste momento de denúncias como o “escândalo Weinstein”; espero que se fale pela ruptura, não tanto pela novidade. É que vão ter de perdoar-me, mas o “escândalo Weinstein” não me parece especialmente chocante; chocante é que esta tenha sido a prática vigente durante centenas de anos.

Todos sabemos que acontecem, e quase todos crescemos num tempo em que estes abusos eram tão conhecidos quanto menosprezados. Os próprios filmes (neste meio que Weinstein dominava) nos foram inculcando a ideia, mais ou menos certa e segura, de que o segredo do sucesso de muitas carreiras de actrizes dependia de “concessões” sexuais a quem tinha mais poder na indústria. Onde o enredo dos filmes terá falhado (perpetuando a vista grossa a estes crimes) foi ao dividir a culpa entre a ambição desmedida das actrizes e uma mera libido exacerbada de realizadores, produtores e magnatas do cinema. A condenação moral surgia igual para quem detém o poder e quem se deixa corromper. Por isso é que, repito, o caso Weinstein não me parece nada chocante, pelo contrário: é uma lufada de ar fresco, pois finalmente andamos a chamar os bois pelos nomes, e finalmente parecemos dispostos a dizer “basta!”.

O grupo britânico The Streets tem na canção “When You Wasn’t Famous” um refrão que diz algo como: “Quando tu és um miúdo famoso torna-se muito fácil conseguires miúdas. É tão fácil que chegas a ficar mal-habituado. Mas quando tentas conquistar uma miúda que também é famosa, então parece que voltaste ao tempo em que não eras famoso.”. Embora esta canção fale de engates, não de assédios sexuais, trago-a para a justapor com o caso hollywoodesco. A lata de Weinstein não se circunscrevia a miúdas sem fama – aquelas que teoricamente são mais fáceis de subjugar pelos poderosos, e fáceis de silenciar mediante somas acordadas em tribunal. No rol de vítimas constam actrizes que, à época, gozavam já de fama considerável, ou de um enorme potencial para a fama, e isso mostra-nos a despreocupação de Harvey. É um desinteresse que não tem nada que ver com desaviso, mas antes com senso de impunidade. Homem com muito poder na indústria, homem com ego gigante e simplesmente homem – aí estão os factores que levaram este “miúdo famoso” a assediar “miúdas famosas”. Por um lado, ainda bem que assim foi – só com a força mediática duma Angelina Jolie, uma Cara Delevingne ou uma Gwyneth Paltrow é que este caso não ficou enterrado nos meandros do nosso desinteresse.

O rastilho destas denúncias foi apanhando poderosos das esferas hollywoodescas, poderosos doutras esferas (como um ministro inglês), mas também gente muito mais comum. Não é coincidência que esteja tudo a ser revelado em catadupa, e parece-me sintomático também de que alguma coisa mudará. Não tenho a ingenuidade de achar que se vai esfumar agora um costume misógino de sempre. Mas tenho a certeza que as denúncias gerarão mais denúncias, que a discussão gerará mais atenção, e que a impunidade não poderá permanecer nos mesmos níveis.

Embora até aqui eu tenha estado a chover no molhado, e meramente a atacar o indefensável, não creio que tudo isto seja isento de controvérsia. As minhas dúvidas começam no preciso momento em que há gente sem dúvidas, e onde cada suspeita, cada indício e cada nome lançado na imprensa se torna um alvo a abater. A par da abjecta e antiga prepotência sexual dos poderosos, também há uma ancestral natureza inquisitória dos justiceiros. Do tumulto bem-intencionado até ao auto-de-fé indiscriminado não é preciso muito.

As minhas reservas não pretendem tirar gás à batalha justíssima contra o assédio sexual, muito pelo contrário: as minhas dúvidas visam apurar as fileiras. Será sempre um combate mais eficaz se não tivermos de responder por agentes acéfalos e cães de fila que se meteram na nossa trincheira. O que se passou esta semana com Adam Sandler é sintomático do exagero que nos ensombra: num talk-show televisivo, o actor poisou a mão no joelho da colega Claire Foy e os Torquemadas da internet agitaram-se. Não interessou que Claire publicamente tivesse enxotado qualquer assédio, amnistiando o gesto distraído do actor. Para ciber-inquisidores, e para colunistas da forquilha e tocha acesa, Sandler já estava no mesmo saco de Weinsteins e companhia (i)limitada.

Aparentemente, aquela mão no joelho é crime público - não precisa de denúncia da vítima - e é ainda o símbolo relaxado dum homem que usa o corpo da mulher a seu bel-prazer (mesmo que de Sandler já se tenha registado o mesmo gesto distraído com colegas homens, e seguramente com os filhos, e provavelmente com qualquer pessoa que se sente ao seu lado num sofá). Claire está errada! Uma mulher, pelos vistos, deve ter direito a expressar-se e falar pela sua própria cabeça...excepto quando iliba um homem de atentados sexuais. Chegou a altura de lhe tirarmos a mão do joelho, pormos-lhe antes as mãos na cabeça e gritar “Sai satanás! Estás possuída pelos demónios falocráticos. Vade retro!”. Claire Foy chegou a ser injuriada por recusar um incómodo - se isto não é prova do radicalismo femista, ou do justiceirismo desvairado que convém eliminarmos, então o que será?

Generalizações não vão enfraquecer a política machista hollywoodesca, vão é enfraquecer as tropas onde os generalizadores se imiscuem. Não quero, portanto, generalizadores no meu pelotão. Há credibilidade nula para o “são todos iguais” só porque são todos produtores, ou todos realizadores, ou todos actores de sucesso, ou todos homens - disto tenho eu a certeza. Aquilo que me deixa dúvidas são outras matérias que vou abordar, ainda que deixando em aberto.

Por exemplo, a reboque do caso do realizador Jean-Claude Brisseau (condenado por assédio sexual, com pena cumprida e, para todos os efeitos, cidadão regenerado a gozar um estado actual de inocência), e das petições para boicotar as retrospectivas dos seus filmes, surgiram-me as seguintes perguntas: vale a pena tanto esforço a querer resgatar uma sociedade das más práticas se não acreditarmos na regeneração dos maus? A energia a perseguir os assediadores faz sentido se excluirmos do horizonte qualquer esperança de regeneração? Justifica-se uma censura plenária a quem já pagou pelos seus crimes?

Outro caso que me deixa incerto é o de Dustin Hoffman. Não são incertezas quanto à baixeza do comportamento que revelou em 1985, quando manteve condutas impróprias com uma estagiária. A minha dúvida é para com o Hoffman do presente, o homem hoje arrependido, o velhinho que afirma que aqueles comportamentos antigos não o definem. Definem ou não? São suficientemente graves para se pespegarem a ele através dos tempos, ou tão remotos que já parecem atitudes de um parente distante?

As más atitudes imputadas ao actor eram, há 30 e poucos anos, vistas com maior benevolência; em 1985, havia condescendência para comportamentos inadequados como estes de Hoffman, tanto que arrancavam mais riso e encolher de ombros do que denúncias. Eram atitudes que se sabiam erradas, mas olhavam-se de forma caricatural, como uma insignificância ou uma praxe do show business. Em 1985 o mundo era diferente: atirava-se lixo para o chão, contavam-se “anedotas de pretos” na televisão ou fumava-se na cara das outras pessoas, tudo com uma naturalidade que hoje seria impensável.

Se em 30 anos evoluímos tanto, e nos libertámos da naturalidade de práticas tão abjectas, será justo algemar o Hoffman de hoje a um conjunto de práticas de que, seguramente, também ele se emancipou? Define-o mais o arrependimento do presente ou o crime do passado? Na verdade, enquanto pareço embarcar no papel de advogado do diabo, a minha dúvida adensa-se. Falava de evolução de mentalidades, mas apercebo-me que o senso de impunidade não terá evoluído assim tanto. A acção de Dustin Hoffman sobre aquela estagiária insere-se numa tradição de assédio que não perdeu fulgor com o tempo (como o comprovam todas as revelações despoletadas pelo caso Weinstein). O abuso do actor é individual e assenta numa posição de poder, por isso não se confunde com costumes generalizados da época (o atirar lixo para o chão e afins). Fica assim claro que os poderosos continuaram a abusar, e que essa prática não acompanhou a evolução das consciências dos últimos 30 anos. Então, quanto ao Hoffman, em que pé ficamos? Estarei atento às opiniões, mas avisado contra as certezas e os autos-de-fé.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

Durante esta semana, assinalaram-se os 500 anos da Reforma Protestante. Fez-se notícia, mas pouco, tendo em conta que raros eventos terão tido um impacto global tão visível e ainda tão presente. Lutero não pretendia tamanho alvoroço, mas o Tiago Cavaco no Observador confirma-o.

Indo nós a caminho de Viseu.

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