Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.
Se os botões do seu telemóvel fossem uma sola de sapato, já estariam tão desgastados com tanto que sobe e desce no ecrã do seu telemóvel à procura do último indicador, da última notícia que lhe dê um sinal de esperança, um vestígio de luz ao fundo do túnel para esta crise, o Grande Confinamento, que atravessamos.
E não é para menos.
Para nós que não somos epidemiologistas, o momento que atravessamos é tudo menos simples. Não é fácil aferir o que está certo ou errado. Quem ouvir ou quem ignorar. O que fazer ou não fazer.
Esta incerteza já caracterizava os nossos tempos modernos, mas encontra nesta pandemia um pico inigualável. Afinal, o que ontem parecia impensável torna-se hoje, de uma maneira ou outra, a norma.
Todos nos lembramos daquele momento em que autoridades de saúde rejeitavam a utilidade das máscaras para o achatamento da curva.
Ou aquele em que a ideia de um confinamento apertado parecia desproporcionada em comparação com métodos menos restritivos como a imunidade de grupo, graças a um alegado equilíbrio entre o bem-estar económico e a saúde pública no longo prazo.
Ou ainda aquele(s) em que investigadores reviam os pressupostos dos seus modelos ao minuto, estimulados pelos impiedosos comentários – incluindo dos seus próprios pares – quanto à “falta de realismo” das suas previsões.
Estas hesitações, revisões e contradições não são uma coincidência – mas até aí já o leitor sabia. As escolhas de cada país e os resultados que daí emergem é que também não são por acaso.
O preço do presente
Uns impuseram confinamentos restritos com medidas apertadas para assegurar o cumprimento de normas. Outros permitiram a manutenção da vida social, apenas com as limitações consideradas “minimamente necessárias”.
Nenhuma destas decisões pode, contudo, causar surpresa. A forma como os membros de cada sociedade produzem, testam e aplicam o conhecimento científico nas suas escolhas colectivas é uma função das respectivas especificidades cultural, histórica e política.
Esta ideia de que existe uma epistemologia cívica para cada contexto é visível nesta pandemia ao vermos países para os quais a escala da epidemia é similar escolher estratégias distintas – e com isso, produzir resultados pouco verosímeis.
Quem olha para a resposta francesa, por exemplo, não conseguiria imaginá-la no contexto alemão ou sueco. O requisito de autorização de saída formal, sob pena de multa. O adiamento da controversa reforma das pensões. O pagamento de táxis ou hotéis para profissionais de saúde que tivessem de se deslocar. Medidas peculiares, no mínimo, mesmo para países com forte Estado Social.
Em tempo de guerra, como declarou o Presidente Macron, não se limpam armas. Mas há sempre a excepção à regra – aqui materializada na primeira volta das eleições locais francesas. Mas é a origem da decisão que importa analisar. Afinal, terá sido o parecer do Conselho Científico que apoia o Eliseu nesta pandemia a viabilizar o acto eleitoral. Em França, estes comités têm fortes raízes no aparelho institucional e são liderados por figuras reputadas da sociedade francesa. Jean-François Delfraissy, que lidera a resposta à COVID-19, por exemplo, tem uma longa carreira de aconselhamento em contexto de pandemia (H1N1, Zika, Ébola).
Em contraste, os peritos mais próximos da Chanceler alemã – Lothar Wieler, Heyo K. Kroemer, e Christian Drosten – são incógnitos para a grande parte da população e alguns deles opositores das posições do actual Executivo. As divergências entre o Ministro da Saúde e Wieler, por exemplo, são públicas. Mas, em vez de dissuadir, estas motivaram a inclusão do especialista como conselheiro. A tradição alemã de procurar activamente o consenso entre os vários quadrantes da sua sociedade e assegurar a representação do maior número de posições possíveis reflecte o legado do período nazi, em que a política se centrou no carisma de um único indivíduo, privilegiando-se agora um processo de tomada de decisão consensual, racional e ancorado no colectivo.
O peso do passado
Em Portugal, por oposição, congratulamo-nos de um milagre português. Os últimos dados mostram, contudo, sinais de excesso de mortalidade – isto é, um número de óbitos em excesso comparativamente à mortalidade média diária dos últimos 10 anos, mesmo depois de contabilizar os óbitos reportados no contexto da pandemia.
A Bélgica, que lidera, com San Marino, o número de óbitos COVID-19 por milhão de pessoas, decidiu contabilizar óbitos com base nos sintomas e contactos que esse indivíduo teve antes do falecimento (sem necessidade de teste) para garantir que não descuida apoio a potenciais focos de contaminação.
O que uns apelam de rigor analítico (contabilizando apenas indivíduos que testem positivo para a COVID-19) outros designam de rigor burocrático (assegurando que casos suspeitos são contados de forma igual). A vontade de ambos os países em providenciar a “melhor” resposta a esta crise é inegável, mas as percepções sobre a premência e prevalência desta pandemia são, inevitavelmente, heterogéneas – e devem ser tratadas de forma distinta – quando o que se inclui e exclui na discussão reflectem escolhas políticas.
Vale a pena olhar para os mapas detalhando a incidência da COVID-19 por concelho.
O que é que poderá justificar as diferenças entre interior e litoral?
Entre centros urbanos e rurais?
E a incidência em lares de idosos?
De quem é que nos esquecemos?
As discussões no seio do Conselho Europeu reflectem a heterogeneidade de impressões quanto à simetria deste choque.
O argumento de que, apesar de todos os Estados Membros enfrentarem o mesmo vírus, a resposta para o futuro não pode assumir uma natureza tão partilhada quanto alguns gostariam reavivou a ideia de que nem todos os países responderam de uma forma “eficaz” e que os resultados assimétricos do vírus resultam de alguma ingerência de hoje ou do passado que importa investigar.
Não demorou muito para que as dúvidas sobre a indisciplina orçamental de uns e a falta de solidariedade de outros bloqueassem certas decisões sobre o futuro europeu.
No outro lado do Atlântico, de onde regressei há um mês, estima-se que uma família caucasiana ganhe 10 dólares por cada dólar de uma família afro-americana. Mas quando a taxa de desemprego ronda os 3.5%, as desigualdades parecem ser menos atrozes.
Com a pandemia, e ainda que representem apenas 15% da população americana, os afro-americanos representam um quarto dos óbitos e um em cada cinco estavam no desemprego em Março – ao invés de um em cada 20, como no início do ano.
De quem é que nos esquecemos?
O passo para o futuro
Diz o ditado que o juiz da guerra é o fim dela – mas não precisamos de lá chegar para começar a reflectir sobre o que se segue. As implicações éticas, políticas e legais de cada previsão calculada ou iniciativa implementada não podem ser ignoradas.
Fazer política durante uma pandemia é o desafio de uma geração – mas o custo das escolhas nesse e noutros momentos rapidamente se reflectirão.
Poderá a imunidade de grupo ser para a Índia a solução que não foi para o Reino Unido, visto que mais de 90% da população tem menos de 65 anos?
Será reduzir de dois para um o número de testes negativos necessários para declarar um doente como recuperado, 14 dias depois da demonstração de sintomas, adequado?
Fará sentido utilizar o conceito de “estratégia de saída” para um período que certamente não será uma sequência lógica de passos e que poderemos ser forçados a reverter porque não há ainda uma “saída” ao virar da esquina?
Será um R0 de 0.94 – isto é, um caso infectado originou em média 0.94 casos secundários – suficiente para reabrir a economia ou só um R0 de 0.7, como na Noruega, é que pode dar a confiança necessária para avançar?
Os testes e hipóteses que definirmos para a estratégia de “desconfinamento” ou “reconfinamento” são tão cruciais quanto a margem que lhe damos para interpretação. No Reino Unido, um dos indicadores que guia a decisão do executivo é “o grau de certeza quanto ao baixo risco de uma segunda vaga de infecções que possa sobrecarregar o SNS britânico”. Parece-lhe fácil de determinar? Ou é, em alguma medida, uma hipótese fácil de negar?
Fazer política durante uma pandemia é o desafio de uma geração – mas o custo das escolhas nesse e noutros momentos rapidamente se reflectirão.
O mundo novo de que se fala será tão ou mais admirável quanto as escolhas que fizermos enquanto colectivo – hoje e sempre. O conhecimento científico e a política sempre andaram de mãos dadas, mas, especialmente durante e após uma pandemia, a forma como esses processos se afirmam, quem participa e como se participa, bem como quanto risco é q.b. ou demasiado, será cada vez mais importante.
Cabe, por isso, a cada um de nós confrontar a dureza e dificuldade das nossas escolhas – e aqueles que por nós a tomam. Questionar as hipóteses em cima da mesa e trilhar de forma activa, em conjunto com aqueles que tanto sabem, o caminho para o futuro que queremos.
Será o Mundo mais que um tubo de ensaio? Ao contrário da Ciência, aqui não há tentativa e erro. A vida e a confiança, sobretudo na democracia e nos nossos decisores, só se perdem uma vez.
*Carlos Moura Teixeira escreve segundo o antigo acordo ortográfico
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