Como ferramentas, tem as redes sociais. Só tem de criar materiais apetitosos e verá que não é difícil ter muitos gostos e partilhas...
- Para começar, comece por dar notícias sem fim de assassinatos, assaltos e outras violências. Ponha um ar compungido e vá desfiando, todos os dias, as desgraças da Dinamarca. Os crimes são muito visíveis e mesmo o mais pacífico país do mundo terá imagens de terror para apresentar — por isso, é fácil.
- Depois, ponha-se à porta duma universidade ou escola dinamarquesa e desate a fazer muitas perguntas a jovens. A seguir, é escolher as respostas mais absurdas e fazer uma montagem bem condimentada com comentários sarcásticos — aproveite para fotografar os tais jovens na pior perspectiva possível. Lá pelo meio, pode deixar uma ou duas respostas certas só para disfarçar.
- Se conhecer bem as pessoas que quer convencer, pense numa figura odiada ou desprezada e escreva uma notícia (pode ser falsa) em que essa personagem diz bem do país que queremos denegrir. Hoje em dia, Donald Trump serve muito bem para este serviço. Diga que ele adora a Dinamarca e verá como começa tudo a torcer o nariz ao dito reino (por acaso, consta que ele gosta mais da Noruega).
- Tire fotografias bem pensadas: as ruas mais escabrosas da Dinamarca, um ou outro momento em que a rainha lá do sítio estava com má cara ou a fazer alguma coisa ridícula — enfim, não é difícil. Não há país que não tenha umas quantas ruas de bradar aos céus ou uns quantos políticos corruptos. Aliás, basta um…
- Encontre um estudo qualquer (diga sempre «científico», mesmo que os autores sejam tão cientistas como o meu avô) que mostre algum aspecto bem negativo do país. Escolha umas citações apetitosas e apresente-as como prova irrefutável da maldade dos dinamarqueses.
Podia continuar, mas estes exemplos chegam. Rapidamente conseguirá provar que a Dinamarca é o pior país do mundo. Se tudo falhar, diga que por lá há muitos suicídios. Costuma pegar.
Enfim, já sabemos que, no caso da Dinamarca, é complicado: a imagem do país é bastante boa. Mas se usarmos as mesmas técnicas para países menos escandinavos, a coisa torna-se mais fácil.
Melhor ainda: estas técnicas podem ser usadas com países, mas também com partidos, com clubes, com regiões, com pessoas! Sim, se eu quiser deitar abaixo algum inimigo, posso usar as mesmas técnicas: falo apenas do que é mau, sublinho as declarações infelizes, digo que o Trump gosta mesmo muito dessa pessoa, mostro fotografias mal escolhidas, apresento um estudo científico que diga qualquer coisa muito má que se aplique ao nosso alvo (se a vítima for loura, digo assim: «Estudo comprova que os louros têm tendência para a psicopatia!»; haverá certamente um estudo que diz isto — ou que possa ser martelado para dizer isto).
Mais uma vez: se usarmos estas técnicas contra alguém ou alguma coisa que já não tem grande fama, então as nossas mentiras tornam-se irresistíveis. Já sabemos: o pensamento crítico desaparece como fumo quando queremos bater um pouco mais naqueles em quem gostamos de bater.
É assim que enganamos os outros — mas não digo isto tudo para ajudar o leitor a enganar os nossos queridos concidadãos. Digo isto para ficarmos atentos a todas as maneiras com que somos enganados.
Podemos fazer melhor? Podemos, mas é difícil: implica desconfiar das nossas inclinações, não partilhar uma notícia só porque dá jeito, pensar nos números por trás das notícias, escavar um pouco mais… Por exemplo, se vemos notícias sobre homicídios, em vez de concluir de imediato que há cada vez mais homicídios, que tal comparar os números com os anos anteriores, com as décadas anteriores, com os países vizinhos? Ou seja, que tal tentar ter alguma perspectiva? Que tal não cair no engodo dos casos isolados apresentados como sinais irrefutáveis da Verdade?
Perante as notícias que nos são agradáveis, o que há a fazer é desconfiar, comparar, ler mais. Enfim, é certo que não é tão sexy como as mentiras com que nos picamos uns aos outros — mas talvez nos faça bem.
(Para terminar, aqui ficam duas propostas de leitura sobre o pensamento crítico: Weaponized Lies: How to Think Critically in the Post-Truth Era, de David Levitin, e O Fardo do Amor, um romance de Ian McEwan. Quem não perceber por que razão há-de ler um romance para ficar a pensar melhor, tem bom remédio: leia o romance.)
Marco Neves | Tradutor e professor. Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa e A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.
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