Antes de mais, é importante clarificar que violência sexual não é sexo, é crime e vem configurado no Código Penal português no capítulo V "Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual". Por isso é necessário dessexualizar este crime, e compreender que não se trata de um contacto de natureza sexual ou de uma relação sexual; é uma violação dos direitos humanos, da liberdade e dignidade da vítima.
Os mitos
1. Os homens não podem ser vítimas de violência sexual
Este é talvez o grande mito acerca desta realidade. Seja nas escolas, em eventos ou nas redes sociais, é comum encontrarmos uma grande resistência à ideia de que os homens possam ser, de facto, vítimas. Sabemos que 1 em cada 6 homens é vítima de alguma forma de violência sexual antes dos 18 anos. No entanto, devido à falta de debate e informação, esta continua a ser uma realidade pouco reconhecida, o que reforça a sua dimensão de tema tabu, contribuindo também para o silenciamento dos sobreviventes.
Importa relembrar que esta forma de violência acontece independentemente da crença religiosa, etnia, cultura, escolaridade, situação económica, idade, classe social, origem, profissão ou orientação sexual quer do homem sobrevivente, quer do abusador ou abusadora.
2. Uma mulher não pode violar um homem
A ideia errada de que uma mulher não pode violar um homem traz associada várias outras crenças. Antes de a esclarecer, é necessário referir dois pressupostos: a maioria dos abusadores de homens e rapazes são homens, e a violação não é a única forma de violência sexual — existe todo um espetro de comportamentos abusivos para além da penetração.
Posto isto, há casos em que rapazes ou homens são abusados sexualmente por mulheres. Podem não corresponder à maioria, é verdade, mas têm de ser tratados com a mesma seriedade. Um rapaz que seja abusado por uma mulher mais velha tende a ser visto como um "sortudo". É preciso reforçar, que violência sexual não é sexo, é crime. Ser praticado por uma mulher ou rapariga não muda a realidade nem a experiência traumática consequente dessa ocorrência.
Em alguns casos, quando a abusadora é mulher o caso deixa de ser visto como abuso; o próprio crime é desvalorizado e passa a ser referido como uma relação de uma mulher mais velha com um rapaz. Tal deve-se principalmente aos estereótipos de género, que tendem a reforçar a aptidão sexual dos rapazes e dos homens. Por isso "temos de acabar com a ideia de que os rapazes estão sempre à procura de sexo e que está tudo bem se for uma mulher a abusar sexualmente", como afirma Jennifer Marsh, membro da RAINN.
Ainda recentemente, a atriz Asia Argento questionou: "Como é que se pode abusar sexualmente de um homem? Como é que podes fazer com que ele tenha uma ereção quando ele não quer?". É importante reconhecer que há ereções espontâneas, ereções motivadas por momentos de stress, ansiedade ou medo. No entanto, é fundamental reconhecer também que, mesmo que a ereção seja uma reação ao toque ou estímulo, tal não valida o abuso sexual. Muitos sobreviventes homens são afetados porque isto lhes aconteceu durante o abuso. Estas são experiências traumáticas que se tornam obstáculos para a gestão e interpretação correta do abuso. Ter uma ereção ou ejacular durante o abuso é uma questão central nos homens e rapazes que foram abusados sexualmente e, para muitos, gera fortes sentimentos de culpa e de vergonha.
Um rapaz ou homem sobrevivente de violência sexual não deixa de o ser porque teve uma ereção ou ejaculou durante o abuso, tenha havido penetração ou não. O único responsável continua a ser o abusador ou abusadora.
3. Os homens estão sempre disponíveis para sexo
Não estão. Os homens também podem ter momentos em que não se sentem disponíveis para contactos sexuais ou íntimos. Tal como a Drª Vânia Beliz, psicóloga clínica e da saúde, refere, "o maior mito da sexualidade em Portugal é o de que “o homem está sempre pronto”. E é preciso aceitar a realidade de que "os homens também podem ter dificuldade no desejo, na excitação. Não são máquinas sexuais, por isso também podem não ter vontade, [podem] estar cansados e até, claro, terem dores de cabeça", como refere numa outra entrevista.
Os estereótipos de género continuam a reproduzir ideias nocivas sobre as normas e comportamentos associados ao masculino e ao feminino. É fundamental que estas crenças sejam desconstruídas para que possamos criar um contexto onde um homem pode dizer que não se sente disponível sexualmente sem que isso represente uma ameaça à sua masculinidade ou, em caso de violência sexual, se torne num obstáculo a procurar apoio.
4. Os abusadores de homens e rapazes são todos homossexuais
A orientação sexual do abusador não é determinante no abuso, nem há indícios de que um homem homossexual seja mais propício a cometer violência sexual do que um homem heterossexual. Há estudos que sugerem que os homens que abusam sexualmente de rapazes identificam-se, na sua maioria, como heterossexuais. E há indicadores de que, na altura em que cometeram o abuso, os abusadores estavam numa relação adulta heterossexual, ou seja, tinham uma companheira.
5. Os rapazes que foram abusados sexualmente vão tornar-se abusadores
Este é um dos receios que assombra muitos homens sobreviventes de violência sexual por diversas razões, e que é referido por vezes como “síndrome do vampiro” — devido à mitologia de que quando alguém é mordido por um vampiro, tornar-se-á num. Esta ideia é errada, e acreditar neste mito pode contribuir para que um rapaz ou homem sobrevivente não procure apoio ou não partilhe com alguém o que lhe aconteceu, por ter medo de ser julgado como um criminoso, ou de acharem que ele poderá abusar sexualmente de uma criança ou adulto.
Existem casos de sobreviventes em que este medo é de tal forma interiorizado que afeta a estabilidade da sua vida. E há homens que acabam por rejeitar a interação com crianças por terem medo que as outras pessoas possam pensar que lhes farão algum mal.
Na realidade, há abusadores (cerca de 30%) que também foram vítimas de violência sexual, mas, interpretar que 30% das vítimas serão abusadores é uma relação de ideias errada.
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