Desde que foi instituído, em 1895, esta situação só ocorreu sete vezes; em 1914, 1918, entre 1940-43, por causa das guerras mundiais, e em 1935 porque a Academia de Letras sueca achou que nenhum concorrente merecia ganhar.
Este ano, 2018, as razões são outras. Completamente alheias ao mundo literário ou ao estatuto institucional do prémio e, o que é mais extraordinário, escandalosas.
Tudo começou em Novembro do ano passado, quando o jornal de referência de Estocolmo, o “Dagens Nyheter”, noticiou que o franco-sueco Jean-Claude Arnault (nascido em França e há muito radicado na Suécia) tinha assediado cerca de dezoito mulheres no decurso de vários anos. No desenvolvimento desta revelação, vários pormenores foram sendo conhecidos. A artista Anna-Karin Bylund já tinha informado a Academia de Letras, em 1996, que tinha sido agredida sexualmente por Arnault, numa situação que ele aproveitou para a assediar. Arnault e a mulher, a poeta Catarina Frostenson, dirigem uma organização, Forum, que organiza eventos culturais e exposições e tinha enorme prestígio no país. Anna-Karin percebeu que para expor no Forum teria de ceder a Arnault. Ainda conseguiu desviar a pontaria da primeira vez, mas à segunda simplesmente desistiu de expor.
Mas o que teria a Academia de Letras a ver com a situação? Muito simples: a mulher de Arnault era um dos dezoito membros da Academia. No esmiuçar da situação tornou-se público que o Forum tinha uma relação muito intensa com a Academia, que inclusive o apoiava financeiramente, o que imediatamente levantou um problema de conflito de interesses.
Outras mulheres vieram então contar situações semelhantes que aconteceram nas instalações do Forum, em Estocolmo e Paris. Novas revelações, comprovadas por testemunhas, deram a conhecer que por volta de 2006, num dos eventos da Academia de Letras, Arnauld agarrou a princesa real, Victoria, então com 27 anos. Pelo menos três testemunhas credíveis observaram a cena e as descrições são coincidentes. Arnald colocou a mão no pescoço da princesa e depois começou a descer até abaixo da cintura, altura em que a guarda pessoal de Victoria o agarrou e afastou. (A Casa Real sueca tem recusado comentar o assunto.)
Perante tais revelações, a mulher de Arnault demitiu-se da Academia. Em Abril, a directora, Sara Danius, por acaso a primeira mulher a dirigir a instituição, cortou todas as relações entre a Academia e o Forum e escolheu um escritório de advocacia para analisar todos os contactos entre as duas entidades. É que, enquanto o escândalo do assédio crescia, também começou a saber-se que Arnault teria informado antecipadamente alguns dos vencedores do Nobel de Literatura. Movia-se nos bastidores, e tinha bastante força. Tanto que, no meio de uma disputa de contornos difíceis de perceber, a própria Danius foi levada a demitir-se.
Na semana passada mais cinco membros da Academia apresentaram a sua demissão e fala-se de mais um que estaria a considerar sair. Pelos vistos dentro da Academia há muito que se sabia destes problemas, mas ninguém queria falar. Um dos demissionários, Klas Ostergren, escreveu no “Svenska Dagblatet : “A Academia sofre de problemas sérios há muito tempo e agora tenta resolvê-los de um modo que coloca considerações obscuras à frente das suas próprias regras, o que constitui uma traição aos seus fundadores”. Outro demissionário, Kjell Espmark, fez considerações sobre o facto de a Academia “valorizar mais as amizades pessoais do que a sua integridade”.
Neste momento apenas dez dos 18 membros da academia se mantêm no exercício das suas funções.
Ora, é a Academia de Letras de Estocolmo, fundada em 1786 para “proteger” a literatura sueca, que escolhe entre autores do mundo inteiro o Prémio Nobel da Literatura. Em 1895, Alfred Nobel instituiu os famosos prémios que levam o seu nome; em 1901 ficou acordado que seria a Academia a escolher o galardão literário, que actualmente pode chegar aos três milhões de euros.
A situação actual apresenta vários problemas. Os membros da Academia são escolhidos vitaliciamente e nunca se pensou que algum viesse a demitir-se. Quando alguém morre, os 17 restantes escolhem o seu sucessor. Mas a escolha requer 12 votos, portanto neste momento não há membros activos suficientes para escolher os que faltam.
O Rei Carl XVI Gustaf, que é por inerência o patrono da Academia, já deu indicações de que vai mudar estas regras, mas certamente que não será a tempo para escolher novos membros e votar o Prémio deste ano.
Outra questão é a escolha do Prémio. Bastam oito votos para eleger o vencedor, mas o problema não está apenas no número. Como diz Mads Rosendahl, catedrático de literatura da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, “também é preciso convencer o mundo de que os membros se empenharam num trabalho sério para escolher o candidato apropriado”. No meio de tanta confusão, ninguém acreditaria que os académicos tenham tempo e cabeça para ler e avaliar dezenas de candidatos.
Aliás, este “trabalho sério”, sempre foi objecto de dúvidas e colocado em questão ao longo dos anos, por diversas razões. A mais genérica é a capacidade que terão dezoito intelectuais suecos de avaliar os méritos da literatura mundial. Falam sueco e, eventualmente, mais duas ou três línguas. Para avaliarem um autor que escreve em, digamos, português, têm de ler uma tradução da língua original para sueco – se existir essa tradução – ou então para outro idioma que todos compreendam, mas que já não é a sua língua materna. Como comparar um birmanês traduzido em inglês com um brasileiro traduzido em francês?
Outra questão genérica, que já se levantou várias vezes, a última em 2016 (com a escolha de Bob Dylan), é a definição de literatura. Originalmente, Alfred Nobel escreveu que o prémio deveria ser atribuído ao “trabalho mais notável num sentido ideal”. Com o tempo assumiu-se que esta definição indefinida se aplicaria a literatura de ficção em prosa. Mas já foram escolhidos autores de não ficção, como Winston Churchill (em 1953), assim como ensaístas e poetas. Churchill, precisamente, terá sido escolhido por razões políticas e não por mérito literário. A politização, assim como interesses ocultos e questões de moda aparecem com evidência em bastantes prémios. Terá sido o caso de Churchill, mas também do ensaísta (e não romancista) Jean Paul Sartre, em 1964, numa época em que o existencialismo estava na moda. Também se provou que a atribuição do prémio a Boris Pasternak, em 1958, e independentemente da qualidade da obra, foi resultado de pressões e duma campanha de relações públicas da CIA, que achava que o “Dr. Jivago”, proibido na União Soviética, era um excelente libelo anti-comunista.
Muitos dos premiados desapareceram na obscuridade da História, enquanto outros autores que resistiram ao julgamento inexorável do tempo nunca ganharam o prémio. Alguns, como Rudyard Kipling (1907) ou Anatole France (1921) são agora considerados imperialistas, racistas ou nacionalistas. Outros, como Pearl Buck (1938) têm um tom piegas e provinciano inaceitável no pós-guerra. Como ainda nos lembramos, a atribuição do prémio de 2016 a um poeta e músico, Bob Dylan, foi muito contestada.
E depois há as situações de preconceito cultural ou de género: nos vencedores contam-se 32 autores ingleses, 14 franceses, 13 alemães e 11 espanhóis. Outros idiomas têm um ou dois autores, ou nenhum. Cem são homens e apenas 14 mulheres.
Além de todas estas criticas – e também por causa delas – junta-se a magnitude do interesse comercial. Numa área da criatividade muito fragmentada, repleta de grandes obras (e ainda mais de pequenas obras...) há uma grande necessidade de galardões credíveis que impulsionem as vendas a nível internacional. As grandes editoras têm um interesse legítimo em verem os seus autores premiados, mas poderão não usar métodos completamente legítimos, ou de ética discutível, para “empurrar” os seus autores favoravelmente à Academia. Nas duas últimas décadas – desde que se formaram as grandes editoras multinacionais - o Prémio Nobel de Literatura garante vendas astronómicas. Mesmo estar na short-list ou na cabeça das apostas já é garantia de grandes tiragens.
Não falta quem diga que aconteceu com o Nobel de Literatura o mesmo que com o Natal – passou dum evento de afirmação espiritual para uma oportunidade comercial.
No meio de todas as dúvidas, críticas e achismos, o que não fazia mesmo falta nenhuma era este escândalo com a Academia de Letras de Estocolmo. Dizem eles que darão dois prémios em 2019, conforme determinam os estatutos. Mas levará algum tempo e muita movimentação das editoras para que o Prémio Nobel da Literatura ganhe o prestígio que todos desejam.
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