Quantos nomes tem a loja?
E eu fiquei a olhar para ela, a pedir só mais uns minutos. Não podia ser: já se fazia tarde e tínhamos ainda muito que comprar. Porquê? Vem aí um novo rebento.
Pois deixei o artigo de lado, à espera de o terminar quando voltasse. Só que, no caminho de casa até a esse pequeno território de sabor sueco (embora governado por uma empresa, hum, holandesa), pus-me a pensar: afinal, como se diz o nome da tal loja?
Parece que ninguém sabe. É uma daquelas eternas questões que acabam em tremendas discussões de café: há quem diga «IKÊIA», enquanto outros se inscrevem no clube do «I-KÊ-Á». Não sei porquê, tornei-me adepto deste último clube.
Há argumentos para todos os gostos: ah, em sueco é assim; ah, o meu primo diz que ele é que sabe; ah, assim é que me soa bem. Ou seja, os argumentos do costume nisto da língua. Por outro lado, talvez os funcionários do IKEA acertem no nome da loja onde trabalham. Decidi-me a ouvir com atenção a maneira como dizem o nome.
Quanto à maneira como os suecos pronunciam o nome, pode ajudar, mas não é o critério absoluto. Poucos dizem «Maicrosoft» em vez de «Microsoft». Mais: os portugueses parecem apostados em inventar uma «Aipal», enquanto os americanos dizem «Apple» — e por aí fora. Confesso que digo «Microsoft» à portuguesa e «Apple» à inglesa. Porquê? Porque «Aipal» só é inglês na cabeça dos portugueses. Mais vale dizer à portuguesa e acertamos mais: «Áple».
Almôndegas e labirintos
Bem, chega de irritações. Chegamos ao dito cujo. Saímos do carro, depois de umas quantas voltas à procura de espaço, e subimos até ao restaurante, onde passamos pelo famoso ritual da ingestão de almôndegas suecas e café barato.
Findo o manjar nas famosas florestas escandinavas de Loures, avançámos para o Labirinto. É um estranho labirinto, este, pois tem setas em todo o lado e ninguém se pode perder. Aliás, o problema deste labirinto é outro: e se não seguirmos as setas? Se atravessarmos uma daquelas reentrâncias meio escondidas que nos levam para uma secção usando um atalho não autorizado? O alarme toca? O universo acaba?
Aliás, olhar para uma planta deste labirinto assusta-me: quando chegamos ao fim, estamos ao lado da cozinha por onde entrámos e, no entanto, parece que andámos até aos confins do mundo. Aquilo é um mundo enrolado em si próprio, dividido por cruéis paredes que nos obrigam a cirandar entre casas tão arrumadas e bem combinadas que ficamos com vergonha dos livros mal-arrumados lá na nossa sala. E apetece dizer: derrubem as paredes! Não queremos barreiras entre as cozinhas e a secção de plantas!
E as outras vidas todas?
Ah, o meu filho, quando chegou à primeira cozinha, disse: «É linda!» Ele lá sabe. O certo é que parece não ter grande critério: continuou a elogiar todas aquelas habitações em ponto pequeno, imaginando como seria viver ali. Aquela loja é também uma espécie de multiverso: imaginamos não sei quantas vidas (olha eu a viver em Estocolmo; olha eu a viver no meio duma floresta; olha eu a viver numa sala preta e amarela; olha eu a viver num escritório com cem livros iguais e em sueco) e de repente a vida desdobra-se na imensidão de escolhas e ficamos pequeninos a olhar para aquilo que nos calhou. O que nos calhou pode até ser bom, mas a imaginação acelera por esse mundo fora. Ficamos também a perceber que nestes mundos alternativos, somos todos diferentes, mas todos sabemos ler policiais em sueco.
(Diga-se que estou sob medicação contra as alergias; efeitos secundários: encontro profundidades em todo o lado.)
O atalho do fim do mundo
Chegamos ao fim do labirinto sãos e salvos e descemos à cave, aquela onde está o armazém self-service, e enfrentamos mais um labirinto, mais uma voltinha, mais umas quantas setas a percorrer diligentemente durante uma boa meia-hora.
É então que o meu pai (sim, os avós do rebento também foram para ajudar a acartar madeira sueca) repara numa abertura: um pouco a medo, como se estivéssemos a entrar em território proibido, atravessamos a abertura e estamos nas caixas! Poupámos todo um labirinto e ficámos sem a oportunidade de comprar novos talheres!
Por momentos, é como se tivéssemos descoberto um dos segredos do mundo. Entre coros celestiais (era tarde, estávamos cansados), fomos buscar as caixas castanhas num dos corredores (sou só eu ou aquilo parece aquela cena do Indiana Jones onde a Arca da Aliança se perde num armazém interminável?) e avançámos resolutos para pagar a lenha cortada.
Esperámos pacientemente a vez. O Simão sentou-se em cima das caixas e deitou-se. O empregado perguntou então se tínhamos cartão I-KÊ-Á. Eu sorri: olha, parece que digo bem. Vai o empregado ao lado e pergunta à pessoa que está a atender: «Tem cartão IKÊIA?» O mundo partiu-se em dois.
Raios. O universo faz pouco sentido nesta loja de móveis. Mas com um filho a nascer, pouco importa. O sentido está todo naquela barriga e no miúdo a dormir em cima das caixas onde estão os futuros móveis do irmão.
Marco Neves | Tradutor e professor. Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa e A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.
Comentários