Terá sido assim em muitas das cidades por esse país fora: vizinhos que mal falavam, entretidos nas suas rotinas, conhecem-se hoje um pouco melhor, de tanta conversa à janela para aliviar o tempo passado em casa, com filhos e trabalhos.
Falo por mim: não é que não conhecesse os vizinhos do meu andar — mas raramente nos aventurávamos em conversas com os habitantes de andares mais distantes… Pois agora até conversamos pelo telemóvel, todos juntos num grupo de WhatsApp.
Ora, as obsessões são como são e, ao pensar nos meus vizinhos, pus-me a pensar na própria palavra e na maneira como é pronunciada por esse país fora. Lembro-me de assistir a acaloradas discussões sobre o primeiro «i» de «vizinho». São discussões que rivalizam com a mais aguerrida das reuniões de condomínio.
Não sei quantos portugueses pronunciam a primeira vogal de «vizinho» como «i» e quantos pronunciam como um «e» sumido, um som que os linguistas representam com o símbolo /ɨ/: um «i» riscado.
No entanto, sei que, pelos territórios do Sul por onde ando, oiço muito mais a versão com o «i» riscado — e sei também que já na Idade Média nos aparecem textos em que a palavra é escrita com «e»: «vezinno», mostrando como o escriba pronunciava a palavra, numa época em que a escolha das letras andava ao sabor do vento que saía da boca de quem escrevia.
A pronúncia sem o primeiro «i» é antiquíssima — e muitos juram que é a pronúncia tradicional, embora nisto da língua as tradições sejam tantas como as famílias. Amigos do Norte juram-me que as suas tradições familiares implicam pronunciar aquele «i» como «i». Acredito neles. Aliás, quando procuro transcrições fonéticas da palavra, aparecem-me as duas variantes: a versão com «i» e a versão sem «i».
São duas variantes antigas e usadas em todas as situações: concluo assim que as duas pronúncias estão correctas. Uma conclusão destas, por motivos que nem sempre compreendo bem, incomoda muita gente… Mas a culpa não é minha: é da língua!
Não é o único caso em que a letra «i» se lê como «e» (e o contrário também acontece muito; basta olhar para a primeira palavra dentro destes parênteses). Acontece o mesmo com «ministro», «feminino» e com «príncipe» (nesta segunda palavra, o «i» que foi dar uma volta foi o segundo) — e podia ter escolhido outros exemplos.
Sempre que temos duas sílabas com «i» uma a seguir à outra, a sílaba átona tende a ser lida como se lá estivesse um «e» (o tal «i» riscado). É um fenómeno conhecido como dissimilação e foi muito importante na evolução da língua. Ora, nalguns casos, alguns falantes parecem recusar a tal dissimilação e, assim, ficamos com duas pronúncias diferentes.
A escrita e a fala têm uma relação complicada… Habituados como estamos a escrever muito, julgamos ouvir na fala aquilo que os olhos encontram na escrita. É fácil encontrar quem nunca tenha reparado que um «s», no fim duma sílaba, se pronuncia como um «j» ou um «ch». Também é fácil encontrar quem nunca tenha reparado que pronuncia o segundo «i» de «príncipe» como «e». Também não será difícil encontrar quem pronuncie «vizinho» com «e» e jure que não o faz. O certo é que a relação entre as letras e os sons não é unívoca. Há muitas destas complicações na nossa língua e o facto de não repararmos nelas não implica que sejam erros, mesmo quando há variação entre diferentes regiões do país.
Haverá quem goste de ter tudo muito arrumado e fique incomodado com estas variações. Ora, desarrumações destas há em todas as línguas. E, se virmos bem, a língua está mais uniforme, por acção da escola, da comunicação social, da urbanização, dos contactos entre pessoas de diferentes regiões... Por isso, quem tem medo de que a variação impeça a comunicação está a lutar com o moinho errado. Há muitas barreiras ao entendimento, mas nenhuma delas é uma vogal ligeiramente diferente aqui ou acolá.
Afinal, num país como Portugal, somos todos vizinhos e, mais do que andar a impor vogais ao prédio inteiro, convém aprender a viver com estas diferenças. Tudo correrá bem — até à próxima reunião de condomínio, em que alguém tentará impor uma pronúncia uniforme e ficará registado em acta que a proposta foi rejeitada por maioria, depois de longa discussão.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu último livro é o Almanaque da Língua Portuguesa.
Comentários