Tenho de começar por relembrar que esta é uma coluna de opinião e não uma peça noticiosa; contudo, se as minhas opiniões são discutíveis, as informações que utilizo, com link ou sem ele, são confirmadas dentro do possível nesta era de fakes.
Dito isto, gostaria de tecer algumas considerações sobre o estado a que chegámos.
– expressão consagrada pelo voluntarioso Salgueiro Maia, o nosso herói histórico mais recente.
E devo continuar esclarecendo a inutilidade da discussão entre os dois termos, emergência e calamidade. É óbvio, como dizem muitos críticos permanentes (seja do que for) que emergência parece muito menos assustadora do que a calamidade. Emergência é quando preparados para uma situação que se prevê difícil, enquanto calamidade é quando a situação já aconteceu e foi muito pior que se esperava. Porque é esta discussão inútil? Porque os dois termos figuram na Constituição de 1976, consagrando estados de excepção específicos – não foram inventados nem escolhidos pelo presente Governo, nem pelo Presidente da República. O Estado de Emergência foi decretado a 18 de Março, no momento em que os poderes da República perceberam que estávamos na iminência duma calamidade sanitária. A partir daí começou uma discussão, não de todo inocente, se o Governo tinha procedido conscientemente preocupado com a saúde dos portugueses, ou se estava apenas a seguir os seus interesses partidários e, quiçá, a corroer a democracia em Portugal, com poderes que ficariam para sempre.
Diga-se, em abono da verdade, que discussões semelhantes ocorreram em quase todos os países – não digo em digo todos, porque há alguns onde discutir não é possível. A não inocência das polémicas têm a ver com um fenómeno preocupante: a politização da saúde pública. Não se trata da discussão eterna se a saúde deve ser pública ou privada (nos Estados Unidos, ou em Cuba, dois exemplos dialéticos, essa questão nem existe), mas sim o antagonismo entre os que estão no governo e os que gostariam de estar. Para quem é da oposição, o Executivo (todos os executivos, em todo o mundo) não agiu a tempo e/ou agiu muito mal.
Em todos os países atingidos em cheio pela epidemia, acabou por se chegar ao equivalente ao nosso Estado de Emergência. Logo a começar pelo primeiro, a China, que vive num Estado constante cujo nome não sabemos, mas que poderia ser chamado de Calamidade Democrática. Decretou o confinamento dos cidadãos em casa, mediu-lhes a temperatura e tirou-lhes a fotografia. Com uma atitude oposta temos a Suécia, que resolveu deixar o comportamento seguro ao critério dos cidadãos. A meio-caminho andou o Reino Unido, em que Boris Johnson começou por minimizar o problema, afirmando que o famigerado espírito de resistência britânico (II Guerra Mundial, o blizt, lembram-se?) mais uma vez venceria qualquer ameaça, para acabar hoje como o terceiro país europeu com mais infectados, inclusive o próprio Johnson.
Depois há os casos patológicos. Trump começou por dizer que era uma gripe que desapareceria por si, e agora, que o seu país está no epicentro mundial da pandemia, diz que tem feito um trabalho “maravilhoso”, “como nunca ninguém fez” e aconselhou os norte-americanos a ingerir detergentes de limpeza. Bolsonaro, um mini-Trump tropical, continua em negação, apesar das imagens da implacável Globo mostrarem cadáveres amontoados nas ruas.
Em todos os países, desde o primeiro, os governos foram apanhados de surpresa. Aliás esta afirmação também é discutida em permanência: se Xi Jiping não estava à espera da epidemia, ou se quando aconteceu não agiu com celeridade (lá está, a questão), ou, se não teria feito de propósito, no sinistro laboratório de Nível 4 em Huang, para dominar o mundo. (Só a título de curiosidade: o laboratório foi montado pelos franceses, em 2015...) Embora cientistas de todo o mundo tenham opiniões opostas sobre a criação do vírus – se seria natural ou fabricado – a verdadeira discussão é política; tem de ser vista no contexto da guerra entre a primeira e a segunda potências do mundo. E, dentro de cada país, também é política a opção entre “salvar” a economia ou privilegiar a saúde pública.
Dentro deste pânico internacional, não nos podemos queixar das decisões tomadas pelo governo português. São equilibradas e decididas ao correr dos acontecimentos, analisando o que se passa noutros países e, pelo menos até hoje, têm dado resultados.
Não nos podemos queixar, mas queixamos. As duas responsáveis pela condução das medidas sanitárias, Marta Temido e Graça Freitas, têm sido acusadas, no mínimo, de desajeitadas, e até de incompetentes. Nestas críticas há uma componente do velho machismo nacional, mas há também a componente política. O mesmo acontece com os comentadores que se vêem na televisão, com destaque para Paulo Portas. As observações são competentes e claras, baseadas no seu conhecido conhecimento dos “dossiers”, mas os desafectos não lhe perdoam a carreira de jornalista que jurava nunca entrar para a política, e depois de político, sujeito a ataques de mau feitio e quiçá corrupto. À esquerda oficial e particular, à falta de conhecimentos para criticar as medidas, a crítica traz à baila a eterna questão do serviço público versus os privados.
No meio deste clima áspero e receoso, anda-se pela rua e vê-se como os portugueses estão a enfrentar a aflição. No outro dia, na CMTV, uma “mulher de bata”, daquelas que sempre dão testemunho nas reportagens da estação, no meio de uma praça deserta, observava “não se vê ninguém na rua” e depois, caindo-lhe a ficha em directo, murmurava “se calhar eu também não devia estar aqui...”
Esta semana fui ao Auchan, que me caiu nas graças porque distribui os lucros pelos trabalhadores. Em Alfragide, um espaço enorme. Pois estava cheio de gente – não a multidão dum sábado da normalidade pré-pandémica, mas muito mais gente do que as normas mandam. Mais de metade não tinha máscaras e muito poucos luvas. Distanciamento social, não se avistava. Vi até dois ou três velhos, daqueles de casaco e boné que costumam ir às praias ver as meninas de fato de banho, a passear e saborear a reforma, sem sequer fingir que estavam a fazer compras.
É verdade, estão longe dos energúmenos americanos que, de armas em punho, protestam contra o confinamento nas suas cidades, porque é uma afronta às liberdades individuais. Mas isso é porque somos um povo de brandos costumes; o descaso pelo perigo e a incompetência perante a ameaça, são uma provocação às decisões do Estado e uma demonstração de estupidez – para não falar no descaso pela segurança dos outros.
Se o Estado de Emergência foi assim, imagina-se como será o de Calamidade. A situação anormal em que vivemos irá lentamente tornar-se a situação normal em que vivíamos. É o mesmo em toda a parte, é verdade. Da Índia ao Peru, as populações estão fartas de confinamento, desesperadas por dinheiro e alheias ao sofrimento terrível dos respiradores hospitalares.
Mas o que se passa no Brasil ou na Coreia não nos toca de perto. A doença vai perdurar por pelo menos mais um ano – até haver vacina e remédios – saltando de país para país, mas o nosso, mesmo dirigido por incompetentes, estará a salvo. Um senhor que adentrou pelo elevador que eu usava, sem protecção alguma e sem preocupação nenhuma, estava pronto para me explicar as suas teorias da conspiração quanto à pandemia. Nem prestei atenção ao que ele me queria dizer. Estou tranquilo quanto à calamidade.
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