O primeiro evento foi a reunião do grupo G7 nos dias 6 e 7 em La Malbaie, no Canadá. (O G7 é constituído pelos Estados Unidos, Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e União Europeia.)

Depois de meses de discussões, marchas e contra-marchas, pedidos formais e informais de Macron, Merkel e Trudeau, Donald Trump confirmou que não considera os restantes países como parceiros estratégicos dos Estados Unidos, com as devidas consequências – para já, tarifas de importação de certos produtos e, num futuro próximo, a redução das obrigações de defesa da Europa. A dissidência já tinha sido evidente quando Trump decidiu não renovar o acordo nuclear com o Irão, contra a vontade dos europeus.

Em La Malbaie o Presidente norte-americano ainda sugeriu por duas vezes que a Rússia voltasse a fazer parte do grupo, que voltaria a chamar-se G8. Ora a Rússia foi expulsa por causa da anexação da Crimeia em 2014, e todos os países europeus concordam que não deve ser readmitida. Os observadores não deixaram de mostrar perplexidade com esta atitude de Trump, uma vez que existem provas concretas (confirmadas pelos poderes judicial e legislativo) de que Putin tentou influenciar as eleições presidências norte-americanas; e que, de um modo geral, e em particular por várias acções (influência em todas as eleições ocidentais, a dita invasão da Ucrânia, ataques a cidadãos russos residentes na Grã Bretanha, assassinato de dissidentes dentro da Rússia, repressão política e de género, etc. etc), a Rússia continua a ser vista como uma potência hostil, agressiva e pouco respeitadora dos valores que os restantes países do grupo defendem.

A estranha relação e admiração de Trump por Putin, que só por si é uma história suspeita e que incomoda até o Partido Republicano, ficou mais uma vez em evidência, mas não foi isso o que mais exasperou os outros líderes; o que é surpreendente é como um presidente norte-americano desfaz uma cooperação que os próprios norte-americanos criaram e lhes serviu tão bem desde 1945.

Não contente com esta autêntica bomba, Donald Trump, que se ausentou no segundo dia de reuniões – dedicadas a temas que não lhe agradam, como a ecologia, o aquecimento global e a situação dos imigrantes – ao voar do Canadá para Singapura, ainda insultou o primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau. É de lembrar que o Canadá sempre foi um aliado incondicional dos americanos, tendo participado voluntariamente nas duas guerras mundiais. Também é de lembrar que Trudeau tem mostrado uma enorme contenção na difícil renegociação do Tratado de Livre Comércio da América do Norte – NAFTA – que Trump pretende alterar substancialmente, embora os especialistas achem que prejudicará tanto os norte americanos como os outros dois parceiros.

Não cabe aqui uma longa discussão sobre as motivações de Trump; conforme quem analisa, tanto pode ser pela sua personalidade narcisista patológica, como pelo que acha que é melhor para os interesses dos Estados Unidos, como um desejo de modificar tudo o que o seu antecessor fez, ou porque vê a política como um negócio, ou ainda porque precisa de agradar à base que votou nele, ou talvez por muitas outras razões que o retratam favorável ou desfavoravelmente. Quaisquer que sejam as motivações, o facto é que Donald Trump acabou com uma articulação mundial que funcionava há setenta anos.

Em seguida, Trump saiu dos escombros de La Malbaie para outra mudança histórica, desta vez em Singapura.

O facto de se encontrar pessoalmente com Kim Jong-un já é em si algo de bombástico. Primeiro pela situação na península: um estado de guerra entre a República Popular Democrática da Coreia, por um lado, e a República da Coreia e os Estados Unidos, por outro, e que existe desde 1950 — o que está em vigor é uma frágil trégua datada de 1955. Segundo, pelo facto da Coreia do Norte, que tem a originalidade de ser a única monarquia comunista que o mundo já conheceu, apresentar um historial de violência contra os seus próprios cidadãos que também não tem par. Entre fome, campos de concentração, controlo total da informação (os rádios do país não têm sintonizador porque só se ligam a uma estação...), trabalhos forçados e assassinatos indiscriminados, o currículo da dinastia Kim é arrepiante.

Exteriormente, a Coreia do Norte é conhecida por raptar ou assassinar cidadãos estrangeiros, praticar pirataria informática, provocar conflitos vários e por uma longa lista de crimes e tropelias. Finalmente, criou um programa de armamento nuclear que detonou a primeira bomba atómica em 2006 e acelerou a partir de 2016, ameaçando com uma guerra de extinção todos os países da região e, finalmente, os Estados Unidos. Em novembro do ano passado Kim lançou um foguete intercontinental com um alcance de cerca de 13 mil quilómetros, podendo assim chegar a qualquer ponto do continente norte-americano. Segundo os especialistas, a Coreia do Norte terá entre 30 e 60 bombas nucleares. Por outro lado, a artilharia convencional norte-coreana está permanentemente posicionada, de modo a destruir em poucas horas a capital da Coreia do Sul, Seul.

Todos os presidentes norte-americanos têm tentado lidar com esta situação, sem resultados palpáveis. Com ameaças ou promessas, andaram a dialogar com os sucessivos membros da dinastia Kim, e foram sempre enganados.

Durante largos meses, Trump e Kim trocaram insultos, como dois miúdos, enquanto o mundo se assustava com a possibilidade da brincadeira dar para o torto. Afinal, a birra seria uma estratégia de ambos – estratégias diferentes, bem entendido: para Trump, mostrar que é um presidente diferente, melhor do que os que o precederam; para Kim, mostrar ao seu país que tem estatuto internacional e ao mundo que está a par com a maior potência militar mundial.

Neste jogo, convém não esquecer a grande potência da nova ordem mundial, a China. São os chineses que possibilitam a existência da Coreia do Norte, pois fornecem-lhe tudo o que ela não tem – e não tem nada, nem matérias-primas, nem comida, nem massa crítica. E porque o fazem? Porque é mais conveniente acossar os Estados Unidos por interposta pessoa e depois fazer de conta que ajudam. A imagem perfeita é um homem que passeia o seu cãozinho e o cãozinho morde as canelas de outro homem. Diz o primeiro para o segundo: “O que é que se há-de fazer, este cãozinho é assim mesmo!”, e nada faz para segurar o animal — ou melhor, puxa-lhe a trela de vez em quando, irritando o outro dentro dos limites... Por outro lado, também não interessa a Xi Jinping que a Coreia do Norte desapareça, ficando com uma Coreia do Sul pró-americana nas suas fronteiras.

Há que tirar o chapéu a Kim; conseguiu uma legitimação de facto na politica mundial, com um país pequeno e de baixíssimo Índice de Desenvolvimento Humano. Aproveitou a necessidade de Trump de precisar dum sucesso internacional, e a sua simpatia evidente por dirigentes autoritários (Putin, Erdogan, Duterte e outros).

Antes da reunião, marcada e desmarcada várias vezes, Mike Pompeo, o Secretário de Estado norte-americano, deixou bem claro o pressuposto para as negociações: “completa e irreversível desnuclearização da península coreana.”

Mas não foi o que aconteceu. Trump, ofuscado com a garantia do seu lugar na História – o primeiro presidente a estar frente a frente com um Kim e a conseguir resolver o imbróglio coreano – cedeu muito a troco de nada. Cedeu em acabar com os exercícios militares conjuntos USA/CN, a que chamou “jogos de guerra”. Cedeu moralmente, ao elogiar Kim como um líder competente, “amado pelo seu povo e que ama o seu povo”, e sem mencionar as barbaridades do regime. Em troca, Kim prometeu uma desnuclearização vaga, nem completa nem irreversível, como Pompeo tinha exigido.

O documento conjunto final é mais fraco e menos comprometedor para a Coreia do Norte do que a “Declaração Conjunta” de 1992, o “Quadro Acordado” de 1994, e a “Declaração Conjunta das Seis Partes”  de 2005 — acordos feitos por três diferentes presidentes norte-americanos que os norte-coreanos nunca cumpriram.

Mas para Trump foi uma vitória, sem dúvida, na medida em que lhe garante votos republicanos nas intercalares legislativas deste ano e, quiçá, a presidência em 2020 – se entretanto o processo do conluio com os russos não o deitar abaixo.

A nova ordem mundial, que está agora em gestação, é possível de imaginar: a China como maior potência, a Europa a tropeçar em si própria, os Estados Unidos num cenário de “Walking Dead”. A Rússia só não faz parte da equação porque, apesar da suprema esperteza estratégica de Putin, não tem massa crítica (produtiva e populacional) para enfrentar a China.

Não deixa de ser interessante ver o espetáculo da História a desenvolver-se à nossa frente, em tempo real. Pena que os bilhetes sejam tão caros.

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