Na divisão de poderes estruturada na Constituição norte-americana, o Supremo Tribunal Federal representa o Poder Judicial, concebido para ser independente do Executivo e do Legislativo. Mas o documento, assinado em 1788, um ano antes da Revolução Francesa, foi elaborado sem precedentes no novo conceito de que o Poder emana do Povo (e não de Deus), e não conseguiu resolver um problema que, mais ou menos, tem atrapalhado a divisão dos três poderes do Estado. O Poder Legislativo é votado pelos eleitores; o Poder Executivo também, directa ou indirectamente; mas quem escolhe a cúpula do Poder Judicial? As incontáveis constituições elaboradas desde 1788 tentaram resolver o problema de várias maneiras; a mais frequente, com pequenas variações, segue este trâmite: os Juízes do Supremo são propostos pelo Executivo e votados no Legislativo. (A outra solução, que não interessa para o caso, é a dos juízes das instâncias mais baixas se elegerem entre eles.)
No sistema norte-americano, o Presidente propõe um candidato, e o Senado vota-o. Se o Presidente e a maioria do Senado forem do mesmo partido, é certo que será escolhido. O Supremo tem actualmente nove conselheiros, escolhidos para a vida. Ou seja, nunca se pode prever quando um deles morre abrindo uma vaga, cuja escolha calhará ao Presidente em exercício.
Cabe ao Supremo interpretar a Constituição, ou seja, determinar se uma situação concreta – por exemplo, o direito de um empregador recusar um candidato a um posto de trabalho, por razões de preferência sexual – está dentro do âmbito do documento. A decisão do Tribunal cria o precedente, gerando jusrisprudência que passa a ser lei.
Na prática, o Supremo pode rejeitar a revisão de uma decisão emanada de um tribunal inferior, o que significa quer a lei vigente se mantém. Se aceitar rever, pode confirmá-la ou não.
Todas estas explicações servem para clarificar o significado do que está prestes iminente: morreu um conselheiro do Supremo, a juíza liberal Ruth Bader Ginsburg e o Presidente Trump escolheu para a substituir uma juíza ultra-conservadora, Amy Coney Barrett. Como o Senado tem maioria republicana, a confirmação antecipa-se certa.
Pelas voltas do destino, em quatro anos, desde que foi eleito, este é o terceiro conselheiro que Trump escolhe – uma possibilidade rara. Normalmente os presidentes têm a oportunidade de escolher um ou dois, e, quando o Senado não é do mesmo partido, a escolha pode ser rejeitada. Na verdade, entre 1875 e 2009, nenhum presidente democrata conseguiu fazer uma nomeação contra um senado republicano.
Ficou para a História a situação precedente, que agora vem à pedra: em 2016, com o falecimento do conselheiro conservador Antonin Scalia, o Presidente Obama propôs o juiz liberal Merrick Garland. (Obama já tinha escolhido outro juiz liberal, em 2009, Sonia Sotomayor.) O Senado de maioria republicana recusou-se a sequer considerar Garland, alegando que faltava menos de um ano para terminar o mandato de Obama. Este princípio não existia; foi usado na altura para não dar mais um juiz liberal ao Supremo, esperando os republicanos que o presidente seguinte fosse do seu partido – o que efectivamente veio a acontecer. Na altura, Mitch McConnell, o líder da maioria no Senado, afirmou: “O momento em que senti mais orgulho foi quando olhei Barack Obama, olhos nos olhos, e lhe disse: Sr. Presidente, o senhor não vai preencher essa vaga no Supremo Tribunal”. Ainda acrescentou peremptóriamente que essa deveria ser a regra a partir daí.
O senador Lindsey Graham, presidente da Comissão de Justiça do Senado, também foi definitivo e até afirmou, numa gravação que tem circulado ultimamente que essa era a sua opinião e não a mudaria no futuro.
Dadas estas afirmações dos dois chefes de fila no Senado, seria de esperar, num mínimo, já não de ética, mas pelo menos de vergonha, que mantivessem os seus alegados princípios. Ruth Bader Ginsburg faleceu a menos de dois meses de terminar o mandato de Trump. Ela própria proferiu um último pedido no leito de morte: “O meu maior desejo é que o meu sucessor não seja escolhido antes da eleição do próximo Presidente”. Em vão; ainda o cadáver estava em câmara ardente no Capitólio (a primeira mulher, primeira conselheira e primeira judia a ter essa honra), já McConnell e Graham declaravam que estavam prontos para aceitar a nomeação de Trump!
Os democratas estão furiosos, mas, de facto, nada podem fazer. Terão de esperar que Biden ganhe as eleições para fazer algumas mudanças no sistema de escolha dos conselheiros; as possibilidades, para já, seriam aumentar o número de conselheiros e limitar os mandatos a dezoito anos, o que lhes daria uma maioria imediata e, no futuro, permitiria que cada presidente pudesse escolher dois juízes. Estas mudanças só serão possíveis se o Senado, a Câmara dos Representantes e o Presidente forem todos democratas – o que não é uma impossibilidade, dado que os republicanos só têm uma maioria de três no Senado e há várias eleições senatoriais difíceis para breve, uma delas para McConnell.
A questão do Supremo Tribunal ter uma grande maioria conservadora ou liberal, ou pelo menos um equilíbrio entre as duas tendências, não se limita à rivalidade entre republicanos e democratas. O Supremo pode, como dissemos, mudar a legislação de forma radical – como fez, por exemplo, em 1973, no famoso caso Roe vs Wade – quando legalizou a interrupção voluntária da gravidez.
Presentemente, com o falecimento de Ginsburg, o Tribunal tem oito juízes, dois nomeados por Trump: Neil Gorsuch, de 53 anos, e Brett Kavanaugh, de 55 anos. A idade é importante: quanto mais novos, mais tempo ficarão no cargo. A escolha de outro conservador criará um desequilíbrio de seis conservadores e três liberais.
E a escolhida por Trump, Amy Coney Barrett, é ainda mais nova: 48 anos. Católica radical, (tão radical que tem sete filhos, dois adoptados), é contra a IVG, a favor do porte de arma por civis (a famosa Segunda Emenda) e contra o débil sistema de segurança social, o Affordabel Care Act, que Obama mal conseguiu implantar em 2010, e que Trump tem tentado eliminar. Com Barrett no Supremo, receia-se que muitas outras leis, como as que dão direitos iguais aos homossexuais e aos transgénero, sejam revertidas. Na sua longa carreira de juíza (para a idade) Barrett também tem tomado sistematicamente decisões a favor dos patrões contra os empregados.
O marido, Jesse M. Barret, é advogado e já exerceu como procurador no Estado de Indiana. Ambos pertencem a um grupo católico chamado “People of Praise”, uma espécie de Opus Dei; Jesse pertence ainda a um grupo de pressão judicial e político, a “Federalist Society”, que tem como programa criar uma rede de juízes conservadores a todos os níveis, inclusive o Supremo. Sobre eles, conta-se uma história, passada em 1992, em que o juiz Clarence Thomas, um federalista, disse a dois assistentes que tencionava ficar no Tribunal até 2043. “Porquê 2043” perguntaram eles. Respondeu: “Os liberais fizeram a minha vida uma desgraça durante 43 anos e agora vou desgraçar a vida deles durante outros 43!”
Graças a Donald Trump, Mitch McConnell e Lindsey Graham, não são apenas os liberais que estão “desgraçados” (“miserable”). Muitos cidadãos, ou porque são diferentes, ou porque são pobres, também se sentirão desgraçados muito depois de Trump não ser mais do que uma má recordação para os norte-americanos.
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