Pode gostar-se ou não de Donald Trump (e há quem goste, até em Portugal, a avaliar pelos comentários que esta coluna recebe); pode acreditar-se que ele é um génio com uma nova estratégia, ao fim de anos de inúteis minudências partidárias e interesses pessoais no “pântano” de Washington; ou achar-se que é um egomaníaco sem objectivo que não seja a sua glória, levado ao poder pelo cansaço dos desiludidos e desespero dos abandonados pelo sistema. Mas será possível colocar de parte todos os achares, enviesamentos ideológicos e percepções feitas, e avaliar cientificamente (isto é, apoliticamente) o que ele quer mudar nos Estados Unidos e na relação do pais com o mundo, e medir se o tem conseguido.

Não é fácil falar destas coisas  (eu diria, ouvi-las) com sapientíssimo bom senso; o bom senso afastou-se definitivamente da percepção das coisas nas últimas voltas ao Sol que o planeta deu. Os espíritos estão abespinhados e, mais do que isso, sobrecarregados de informação que não conseguem digerir – e ainda menos avaliar a credibilidade. A Internet, essa maravilha capaz de colocar frente a frente, em tempo real, zilhões pessoas dos 195 países do mundo, afinal tem servido para uma crescente violência verbal e argumentação destrambelhada. Entre países e dentro de cada país. É só ver o “nosso irmão” Brasil, fácil de aceder pela língua comum, para assistir a uma interminável discussão entre pró-lulistas e anti-lulistas, a gritar tanto que não se conseguem ouvir. É só considerar, por exemplo, o que já se sabe da interferência da Rússia nas eleições norte-americanas, para duvidar de tudo o que se lê e ouve. Tal como o próprio Trump disse, realizando, sem se dar conta, a previsão de George Orwell: “tudo o que ouvem e tudo o que vêem não é o que está a acontecer.”

Tanta informação, tanta confusão.

A política oficial de Donald Trump está perfeitamente proclamada nos seus slogans: “America First” e “Make America Great Again”. Ou seja, passar do convívio periclitante entre países para o antagonismo constante. Nós e eles. O velho nacionalismo que governou a politica mundial durante séculos, com uma pitada nova de sabor mercantil, própria de um comerciante. Trump sempre se definiu como um homem de negócios, “great”, “the best”, e sempre disse que o que a politica precisava era de seguir as regras comerciais – o melhor negócio para “nós”, a pior oportunidade para o “outro”. Consensos são para os fracos, os perdedores.

Esta discussão, se a política pode ser gerida como um negócio, é antiga. (Não confundir com a polémica entre o capitalismo do lucro e o socialismo da igualdade. Isso é outra conversa.) Mas, sendo antiga e objecto de incontáveis tratados e experiências, nunca tinha sido aplicada na prática de uma maneira tão abrangente. Trump é um homem de negócios no pior sentido do conceito: negócio bom é aquele em que eu ganho e o outro perde. Não cumprir contratos, apertar os fornecedores mais fracos, pagar mal e desprezar os empregados, até mesmo falir, quando a falência é mais conveniente. Isto não é uma opinião nossa: está escrito com todas as letras no livro “The Art of the Deal”, nas entrevistas e discursos de Trump.

Se isto é válido para o seu país e para o mundo, também o é na sua vida pessoal. Ivan Krastev, do Instituto de Ciências Humanas de Viena, diz que ao analisar a entourage do Presidente não vê amigos: apenas fãs e inimigos. O fãs são leais e não esperam reciprocidade; os inimigos são valiosos porque ajudam a resolver as situações; ele pode afirmar o seu poder esmagando-os ou transformá-los em amigos. A abordagem à Coreia do Norte é um bom exemplo; a relação com a Rússia outro.

Então o que pode fazer Trump para que a sua empresa, os EUA, tire o máximo partido das suas potencialidades – as mais sofisticadas forças armadas do mundo, a maior superioridade tecnológica, alcance estratégico mundial, e presença abrangente do xadrez mundial? E o que tem de fazer para que as fragilidades da empresa sejam reparadas ou eliminadas? Os EUA têm uma fraca produção industrial, setores obsoletos, deficiências nos transportes, alta criminalidade, baixo nível de escolaridade e péssima assistência de saúde. Uma sociedade em que o consumidor é rei, habituou-se a consumir abundantemente mas desabitou-se de produzir. Até as gravatas America First, vendidas pelo merchandising de Trump, são feitas na China.

O principal problema de Trump não tem sido a comunicação social, “os inimigos do povo”, como ele lhes chama (tal com Estaline chamava); também não tem sido o Partido Democrata que, habituado às disputas tradicionais, não sabe que estratégia adoptar; nem sequer os aliados de sempre dos Estados Unidos, agora transformados em inimigos pelos insultos e tarifas aduaneiras que lhes atira.

O principal problema de Trump, e aquele que eventualmente o poderá derrubar, é a escolha dos elementos da sua equipa – aqueles que contratou para o servir.

Desde o primeiro dia, quando Trump atirou a primeira mentira, foleira e inútil, de que a multidão que assistiu à sua tomada de posse foi maior do que a de Obama, que a comunicação social o tomou de ponta e tem confirmado todas as suas afirmações. Segundo o “Washington Post”, que faz um “fact checking” diário, no primeiro ano como Presidente, Trump fez 4.229 afirmações falsas ou enganadoras. Mas isso não tem a mínima importância para os seus seguidores. O que eles querem não é verdade, é esperança. Esperam dias melhores e estão dispostos a esperar. Também não interessa ao Partido Republicano, cuja maioria no Congresso (Senado e Câmara dos Representantes) lhe tem permitido fazer as reformas que sempre sonhou.

Então, o que poderia derrubar Trump? Na divisão de poderes da Constituição, somente o Poder Judicial tem armas para encostar Trump à parede. Não para o impedir (“impeach”), porque essa figura jurídica pertence ao legislativo; mas para descobrir um crime suficiente para obrigar as câmaras a fazer essa votação. Até agora, Trump já fez muitos mais delinquências do que os dois presidentes que foram alvos de processos de impedimento, Nixon e Clinton; mas os tempos mudaram e o que parecia inaceitável há dez anos agora não chega nem para levantar sobrolhos. Basta lembrar, para não perder muito tempo em minudências, que os crimes mais graves, na legislação americana, são o perjúrio e a obstrução da Justiça – mentir, resumindo. Nixon não foi impedido por ter ordenado o assalto ao escritório dos democratas (Watergate), mas por ter dificultado as investigações – obstrução de justiça. Clinton não foi impedido por ter feito sexo com Mónica Lewinsky, mas por ter dito que não fez – perjúrio – e por ter impedido as investigações sobre o caso – obstrução de justiça.

Já se percebeu que a mentira não é suficiente para que o Congresso tente sequer um processo de impedimento a Trump; a maioria republicana não quer e a minoria democrata não pode. Resta a obstrução de justiça.

Obstrução de justiça seria se se provasse que a campanha presidencial de Trump teve um conluio (“colusion”) com agentes estrangeiros – os russos – para ganhar as eleições, e que Trump estava a par desse conluio. É nisso que o Procurador Especial Robert Mueller está a trabalhar. Trump não o pode despedir – bem que gostaria – porque foi o que fez Nixon com o Procurador Especial Archibald Cox e que acabou por levar ao seu impedimento.

Mueller, que tem uma equipa de centenas de especialistas a trabalhar (nos Estados Unidos a Justiça não tem falta de meios, como acontece endemicamente em Portugal) e tem avançado segura e prudentemente, seguindo uma trajetória consagrada: apanhar os mais fracos para que denunciem os seguintes na cadeia hierárquica, até chegar ao topo. Foi assim, por exemplo, que o juiz Sérgio Moro tem procedido no Brasil, ou António di Pietro agiu em Itália.

Como Trump sempre se rodeou de gente de pouco nível ético, moral ou cívico, cujo único critério de escolha era a fidelidade – fidelidade essa que só vai até ao momento em que a pessoa se sente pessoalmente ameaçada de cadeia–, Mueller tem avançado devagar mas com os pés bem assentes.

Na semana passada, finalmente, chegou a dois muito próximos de Trump, Paul Manafort e Michael Cohen, o que levou a comunicação social, os democratas e os anti-Trump a festejar; é desta que o Donald cai!

Mas não é assim tão fácil.

Os casos são diferentes. Paul Manafort, um lobista internacional que já trabalhou para os presidentes Viktor Yanukovych (ucraniano, pró-russo), Tayyp Erdogan, Ferdinand Marcos e Mobutu Sese Seko, entre outras figuras queridas da cena internacional (como Jonas Savimbi), viu-se sem dinheiro quando Yanukovych caiu e achou que trabalhar na campanha presidencial de Trump poderia abrir-lhe novas oportunidades. Trump, que nunca verifica os antecedentes dos que o adulam, nomeou-o logo Diretor da sua campanha.

Presume-se – presumiu a equipa de Robert Mueller – que Manafort saberia dos prováveis casos de conluio da campanha com os russos. Não foi difícil levantar dezoito delinquências de Manafort, desde lavagem de dinheiro à tentativa de influenciar políticos americanos a favor de estrangeiros, passando por evasão fiscal, etc. Esperavam assim fazer o que se chama um “plea bargain”, isto é, aliviar crimes de Manafort em troca de ele dar provas de conluio da família de Trump e até do próprio Presidente.

Mas Manafort não cedeu. Ou porque não tem essas provas (ele foi Diretor da campanha por pouco tempo), ou porque espera que Trump o perdoe. O Presidente pode fazer isso e até já elogiou Manafort por “não ter aberto a boca”... (Não há ninguém como Trump para se incriminar a si próprio, pelos vistos impunemente.) Vai passar décadas preso, é o que se calcula, uma vez que oito das acusações se provaram, mas nada se adiantou em relação ao que interessa ao Procurador-Especial.

O caso de Cohen é outro. Era o “fixer” (encarregado dos negócios menos limpos) de Trump, e nessa qualidade tratou dos pagamentos a duas mulheres que tiveram casos com o Donald – pagamentos esses que configuram um crime, caso tenha sido usado dinheiro da campanha eleitoral. (Já nem estamos a falar do facto de Trump, casado, ter tido dois affairs, o que seria suficiente para derrubar qualquer outro presidente, mas nos tempos que correm é apenas um pecadilho sem consequência. A Melania que se queixe...) Cohen, que também tinha muitos negócios sujos, aceitou o tal “plea bargain”: foi perdoado de uns tantos crimes, a troco de contar tudo sobre os pagamentos.

Simultaneamente soube-se que Mueller fez acordos com David Pecker, o asqueroso dono do tablóide “National Enquirer”, grande amigo de Trump, e que foi operador dum desses pagamentos; e com Allen Weisselberg, o contabilista-chefe de Trump há mais de trinta anos.

Portanto, de Manafort nada saiu. Mas de Cohen saiu o suficiente para prosseguir as investigações. E a entrada em cena de Weisselberg, que inclusive preencheu as famosas declarações de IRS que Trump sempre se recusou a divulgar, pode fornecer informações que, mesmo não tendo a ver com o conluio, podem revelar ilícitos vários, como por exemplo os nunca esclarecidos negócios da família Trump com “empresários” russos.

Além destas duas peças, há mais próximos do Presidente que estão em má situação. É o caso de Roger Stone, assessor da campanha presidencial, velho amigo de Trump e um advogado tão sem escrúpulos que até já foi objeto dum documentário no Netflix. Recebeu intimações para responder por ter sido a ligação entre a campanha e o WikiLeaks (que divulgou os mails da campanha de Hillary fornecidos pelos russos) e com Kristin Davis, a famosa proxeneta que servia clientes de alto nível politico e empresarial.

Também é o caso do general Michael Flynn, o primeiro Assessor de Segurança Nacional de Trump, que já confessou contactos menos próprios com o embaixador russo e recebeu dinheiros mal explicados de governos estrangeiros.

Há ainda Rick Gates, que trabalhou na campanha republicana e fez um “plea bargain” devastador para Manafort e para a entourage de Trump, a troco de lhe serem perdoadas 23 acusões de fuga aos impostos, delitos bancários e “conspiração”.

Mas não chega. George Papadopulos, assessor de politica estrangeira na campanha de Trump, confessou-se culpado de ter mentido ao FBI (o tal perjúrio) sobre os seus contactos com um agente russo, Joseph Mifsud, que lhe forneceu supostas malfeitorias de Hillary Clinton.

Finalmente, temos Alex van der Zwaan, um advogado holandês que também se confessou culpado de esconder do FBI o seu trabalho para Rick Gates em relação ao lóbi do Presidente da Ucrânia.

Quer tudo isto dizer que o cerco de Robert Mueller aperta-se. Estas duas últimas condenações, de Manafort e Cohen, e as várias confissões, acordos e imunidades de outros próximos de Trump deram alento a quem espera que Trump venha a ser impedido.

Mas para isso também seria necessário que nas próximas eleições intercalares os democratas conseguissem a maioria da Câmara dos Representantes. Seria, mas poderá não ser. Os democratas também parecem pouco interessados em tentar impedir Trump, pois caso não conseguissem isso reforçaria as convicções dos seus apoiantes em eleições futuras.

Finalmente, se Trump fosse impedido, quem assumiria seria Mike Pence, o vice-Presidente, que muitos consideram ser muito mais radical do que Trump. Pence tem uma agenda conservadora evangélica, enquando Trump nem sequer tem agenda – apenas quer ser grande, “the best”.

Cair da cadeira não está à vista.