Uma vez, há já bastantes anos, coincidindo com uma cimeira europeia que decorreu no Castello Sforzesco, em Milão – Bettino Craxi era o anfitrião e Mário Soares liderava a delegação portuguesa – uma livraria milanesa acolhia ao fim da tarde um debate no qual participava Umberto Eco. Obviamente, foi irresistível a tentação para, por umas duas horas, trocar a cimeira político-económica que tinha sido o motivo da deslocação em reportagem para ir escutar e ver (ouver, como diz José Duarte) o mestre que se tinha tornado best-seller mundial com o apaixonante romance O Nome da Rosa.
Foi para mim (por mais que resista a falar na primeira pessoa, neste caso, é inevitável) uma experiência inesquecível, ainda que encavalitado sobre o corrimão de uma escada num equilíbrio que mal dava para acompanhar o essencial da sessão por entre tanta gente apinhada. Foi uma ocasião única.
Impressionante o modo como, a partir de cada palavra que era colocada pela jornalista da RAI que conduzia a discussão, aquele homem, erudito, divertido, cheio de humor, contava uma história e mais outra e mais outra, cruzando filosofia, literatura, ciência, religião, misticismo, política, jornais, revistas, televisão publicidade, design e até futebol. Com espírito fascinante, interrelacionando tudo. Várias vezes repetiu: estudem, é preciso que estudem para afastar a estupidez. Estudem a História para poderem compreender o tempo contemporâneo. E lá vinha a seguir mais um sorriso, um olhar para um lado e para outro, e uma outra história. Naquele fim de tarde ele parecia querer falar sobre significados em slogans políticos.
Eu tinha ido para aquela sessão cheio de curiosidade mas à espera de encontrar no professor famoso um homem distante, arrogante, talvez pedante. A impressão que ficou foi a mais oposta. É certo que não foi especialmente amável quando na porta de saída tentei colocar-lhe duas perguntas – respondeu, já com o chapéu de aba larga na cabeça, que estava atrasado, de facto a sessão tinha-se prolongado pelo dobro do tempo previsto - mas, perante aquela espantosa energia intelectual, aquele gosto de partilhar saber que gera cumplicidade, teria de sair daquela sessão fascinado por aquele jogo de inteligência conduzido por um sábio divertido.
Voltei, porque era essa a tarefa do ofício, à procura da actualidade da ocasião na cimeira política europeia no Castello Sforzesco e a tratar de a cruzar com o que ouvira de Eco. Caminhei a pensar numa das respostas naquela sessão: “Evitem as frases feitas, só os burros usam palavras triviais, descuidadas”.
Nesta terça-feira, 23 de fevereiro, a cerimónia fúnebre de Umberto Eco, o mestre dos códigos que gostava de rir dos poderes, o explicador do mundo em que estamos, o semiólogo, filósofo, professor, investigador, crítico, escritor, cronista, estrela mundial de primeira grandeza, decorre precisamente no Castello Sforzesco, em Milão. "La Repubblica" conta que Umberto Eco via aquele castelo da janela de sua casa.
Apetece retomar a leitura das 160 páginas de Número Zero (livro editado em Portugal em maio de 2015 pela Gradiva), um romance pleno de ironia em volta do tema da intriga e da mentira no jornalismo na história recente de Itália (tudo tem âncora em junho de 1992). Ou como um jornal que nunca chega a sair pode servir, não para difundir, mas para encobrir as notícias.
Eco, deveria ser ecco: sim, eis o sábio.
Está prometida para maio a edição de um último livro do sábio Umberto Eco, Pape Satan Aleppe, título escolhido a partir da enigmática abertura do Canto VII do Inferno, na Divina Comédia de Dante. Eco remete-nos, neste livro de crónicas, para a confusão do tempo contemporâneo.
TAMBÉM A TER EM CONTA:
Estão a faltar remos e motores para conduzir o bote da humanidade na direcção certa? É o alerta reforçado por Zygmunt Bauman, o filósofo da modernidade líquida.
O apelo do papa Francisco para uma moratória, em todo este ano, na execução de penas de morte, vai ser ouvido? Falta que não seja apenas moratória. Quando é que o mundo se livra da pena de morte?
Donald Trump (aqui em versão Game of Thrones, Winter is Trumping) está mais perto de ser o nomeado republicano para a final presidencial nos EUA em novembro. É, mesmo assim, menos perigoso para o mundo que Ted Cruz, o pupilo do Tea Party, e que Marco Rubio, o Neo Con. No campo dos democratas, no Nevada, Hillary Clinton ganhou, mas por poucos (sempre é melhor que perder) a Sanders. A próxima terça-feira é decisiva e Bloomberg está à espera de saber se há espaço vazio para ele avançar.
Em quatro anos, três prémios principais do Festival de Berlim para uma nova vaga de cineastas portugueses: depois de João Salaviza e Miguel Gomes (2012), agora Leonor Teles, com A Balada de um Batráquio.
O mexicano Alejandro González Inãrritu vai emparceirar com Ford e Mankiewicz e receber dois Óscares consecutivos (depois de Birdman, agora O Renascido) como melhor realizador? Este é, finalmente, o ano de Leonardo DiCaprio? Ou o de Edie Redmayne? O de melhor atriz pode ser para outra que não Cate Blanchett? Spotlight, com seis nomeações, que estatuetas vai receber? A festa é já na noite de domingo para segunda e há que seguir tudo, também no SAPO.
Correntes d´Escritas, a partir de hoje, por cinco dias na Povoa de Varzim
José Duarte: 50 anos a fazer Cinco Minutos de Jazz. Eco precioso.
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