Não somos livres, não somos estimulados a produzir pensamento, a ter ideias, a considerar a nossa identidade, a nossa história. Andamos neste mundo, quais carneiros, por pastagens cibernáuticas, a ler as gordas, a passar o dedo no ecrã, disciplinados e condicionados. Manipulados. Mesmo que tenhamos a ideia da nossa liberdade, estamos presos numa bolha de algoritmos que comandam a nossa existência. Ninguém quer que o pensamento se produza; muitos querem que o pensamento se cale, que não se faça, simplesmente. Porque é mais cómodo, é menos acintoso, provoca poucas ondas e já ninguém quer navegar, essa arte que implica precisão. Morreu Eduardo Lourenço. Tive o privilégio da sua amizade.
Gostava do seu sentido de humor, mas sobretudo gostava de algo que só as pessoas iluminadas parecem conseguir ter: a simplicidade de falar com qualquer um, sem nos deixar sentir que não sabemos o suficiente, não lemos o suficiente. Era um homem generoso na maneira como se relacionava com os outros. Era um bom contador de histórias. O que o movia era o interesse absoluto pela identidade deste país que é seu, mesmo que tenha conseguido, por viver em vários outros países, uma distância que lhe dava a sabedoria de nos dizer como somos. Nós na saudade, na conquista, no fogo de um império, na ideia de desassossego de Pessoa.
Morreu Eduardo Lourenço, tinha 97 anos. Estivemos juntos várias vezes ao longo dos anos, entrevistei-o, publiquei textos da sua autoria na revista Egoísta. Sempre foi de uma gentileza imensa e eu tenho tendência para apreciar sobremaneira as pessoas que são inteligentes e gentis, que não precisam de se enaltecer no exercício constante da exibição do que sabem. Eduardo Lourenço era assim. Tinha um olhar curioso e atento e gostava de andar de braço dado. No fim, esse último caminhar juntos, numa cerimónia de homenagem à sua carreira, é o retrato que ficará comigo. Dizia ele, então, que o mundo estava do avesso, que era importante que os mais jovens percebessem o que é a cultura, o que é ser português, como desenhar melhor o futuro. Tinha, tem, razão, precisamos de pensamento, de procurar saber e pensar, de manter uma identidade não padronizada, não manipulada. Para isso é preciso liberdade e Eduardo Lourenço, que viveu tanto tempo, 97 anos, tinha uma liberdade verdadeiramente invejável. E nós, aqui cada vez mais sós, deveríamos reclamar essa liberdade e promover o pensamento, espalhar ideias de todas as formas, ideias que incomodem, que proponham algo mais, que desafiem. A liberdade é um exercício constante, precisa de aplicação. Eduardo Lourenço sabia-o bem.
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