“Sabrina”, de Nick Drnaso, é um livro de banda-desenhada. Creio que por cá se perdeu o hábito de dizer “história aos quadradinhos”, e que a expressão se tornou tão obsoleta quanto as palavras “bera” ou “chui” (embora esta última sobreviva resiliente na legendagem de filmes e séries). Talvez o termo “quadradinhos” tenha aberto espaço a um desdém simplista (que é mais difícil na expressão congénere brasileira “Histórias aos Quadrinhos”), desdém esse que se estendeu a generalizações costumeiras, como tratar toda e qualquer BD por “livros do Patinhas”. Durante vários anos, e em vários meios, saber a nomenclatura apropriada de certos formatos ilustrados sugeria atentados à maturidade, à intelectualidade, à virilidade. Parecia, então, que se falhava de propósito: havia quem chamasse “banda-desenhada” aos filmes de animação e chamasse “livros de desenhos animados” à banda-desenhada; no fim tudo se resumia a “os bonecos”. Isto não era uma questão de sexualidade, plumas e pailletés, por isso ninguém vivia no armário - mas era uma questão de balões e vinhetas, e havia muitos “maricas” da BD empurrados para a reclusão duma peça de mobiliário qualquer.
“Sabrina”, de Nick Drnaso é um livro de banda-desenhada na curta lista de nomeados para o prémio literário Man Booker deste ano. A polémica que se segue não apanhará ninguém de surpresa, basta terem atentado para o facto de que, há poucos segundos, leram “banda-desenhada”, “prémio” e “literário” na mesma frase. A condimentar estes dados picantes está o contexto apimentado do prémio Nobel da Literatura – não só um galardão recente causou celeuma especial (por ter sido atribuído ao escritor de canções Bob Dylan) como, ainda por cima, este ano não haverá Nobel da Literatura, o que redobra a atenção dada a outros prémios reputados, caso do Man Booker Prize. Até ver, Alice Vieira ainda não veio comparar o livro de Drnaso aos cartoons de José Vilhena, o que me faz crer que a polémica por cá está morna.
“Sabrina”, de Nick Drnaso, é um livro de banda-desenhada que não revoluciona a banda-desenhada. Não há nenhuma grande inovação estrutural, narrativa ou estilística que se apresente como novo paradigma; pelo contrário: a singularidade de “Sabrina” condiz, apenas e só, com a singularidade do seu autor, e a maneira como códigos antigos servem o génio, a sensibilidade e a originalidade - isso é um paradigma surpreendentemente antigo na BD. Pode então parecer um vexame (sobretudo aos sobranceiros que descartam tudo com “Patinhas” e “bonecos”) que a inclusão da banda-desenhada na Literatura atinja o seu pico de discussão neste livro que, aparentemente, nem sequer revolucionou esse género menor das histórias aos quadradinhos. É verdade que o debate não é novo (basta recordar, por exemplo, o consensual “Maus” de Art Spiegelman, BD que há quase 30 anos abalou muitos preconceitos literários exclusivistas), mas é impossível não reiterar o contexto actual em torno do Nobel: depois do prémio atribuído a Dylan, as facções andam muito mais extremadas, o argumentário mais definido, o debate mais pronto. Este livro e esta nomeação são, portanto, excelentes pretextos para reacender uma discussão que ainda estava fresca e longe de consensos.
“Sabrina”, de Nick Drnaso, é um livro de banda-desenhada que não precisa ser chamado de outra coisa para que o possamos considerar uma obra-prima. Esse é o meu ponto de discussão. A partir dos anos 80, popularizou-se o termo “graphic novel” (romance gráfico), que é a expressão respeitável com que se passaram a designar as BD pensadas e publicadas no formato de livro. Embora eu não tenha a certeza se, em género ou formato, um romance gráfico pode equivaler-se a um romance literário, não tenho qualquer dúvida de que um romance gráfico pode ser uma obra superior a um romance literário.
“Sabrina”, de Nick Drnaso, é um livro de banda-desenhada - isto que acabei de escrever foi uma descrição, não um juízo de valor. É aqui que as discussões se equivocam e troca-tintam. Os defensores da inclusão da BD na Literatura são, por vezes, os primeiros a menorizar a designação “banda-desenhada”. Acreditam que um romance gráfico pode ser uma obra-prima, e por isso querem legitimá-lo com uma nomenclatura que vá além da banda-desenhada; almejam a Literatura. Ora, eu creio que obras-primas narrativas nunca precisam de estar legitimadas pela nomenclatura, mas sim pela fruição, pela análise, pelo impacto. No outro lado da barricada (nos que querem a Literatura imune a cantigas e bonecadas) também há quem dê tiros no pé. Para disfarçar a sobranceria e o supremacismo, investem em louvores. Vem destes puristas uma espécie de apartheid elogioso que dita coisas do género: “Eles são muito geniais, muito eloquentes e muito auto-suficientes lá no bairro deles, não precisam de vir para o nosso.” – para conter a BD no ghetto da BD, esforçam-se a apregoar quão virtuoso esse ghetto é. O esforço de despromoção pela via da promoção tem tudo para dar errado.
“Sabrina”, de Nick Drnaso, é um livro de banda-desenhada. Antes de enveredar pelo desalinho deste texto, eu tinha decidido aproveitar a liberdade que aqui me concedem para escrever uma recensão entusiasmada sobre o conteúdo do romance gráfico em questão. Entreguei-me a esse exercício durante algumas horas e alguns parágrafos, até me aperceber que estava a fazer uma crítica literária tout court. Escrevi sem querer saber se era Literatura, mas dei por mim a escrever como se fosse. Apercebi-me ainda que não estava perante apenas banda-desenhada: era banda-desenhada, sem os “apenas”. A falta de condescendência foi tão natural que se tornou emergente, e acabou por tornar-se no mote do “desalinho deste texto”.
Quanto à Literatura, não sou capaz de ditar-lhe uma definição, no sentido em que consigo formular várias – todas universais, quase todas condizentes, algumas mais elásticas, outras mais ecuménicas, as restantes mais monolíticas e amovíveis. A Literatura evolui, todos sabemos (evolui até quando regride). É natural, portanto, que a sua definição se objective dentro do subjectivo, e que assomem polémicas. Enquanto houver discórdia razoável, haverá opinião – e a esse exercício não me furto. No capítulo das certezas, estou certo do que acho, e “Sabrina”, de Nick Drnaso, é um livro de banda-desenhada que é o melhor livro do ano.
Sítios certos, lugares certos, e o resto
Surpresa das surpresas, a minha primeira recomendação do dia é “Sabrina”, de Nick Drnaso” (que pode ser encomendado em várias livrarias portuguesas)
Uma crítica excelente e detalhada sobre “Sabrina”, muito atenta à semiótica alargada da banda-desenhada.
Voz à Directora Literária do Prémio Man Book
Comentários