O concurso de Miss Universo foi inventado nos Estados Unidos em 1926 - é o mais antigo de todos, inclusive o de Miss Estados Unidos, que começou em 1952 - e durante anos foi um acontecimento noticiado um pouco por todo o mundo. Várias empresas e acordos foram comprando o evento, que inclusive pertenceu a… Donald Trump! Desde há alguns anos é propriedade de uma empresa tailandesa, dirigida por uma tal Jakkaphong Jakrajutatip.

As mudanças de comportamento e as críticas ao sexismo e ao exibicionismo foram-lhe retirando importância e, hoje em dia, praticamente ninguém se interessa por essa exibição de beleza padronizada e indigência intelectual. Deixou de ter qualquer interesse, tanto por motivos culturais como comerciais, mas, por razões que nos escapam - estéticas, talvez... - nos países da América do Sul e, sobretudo, na América Central, continua a ser um sucesso de proporções futebolísticas. Ser Miss Universo é o sonho das jovens destes países, não só pelo reconhecimento nacional, como pela oportunidade de ganhar muito dinheiro (em muitos casos, sair da pobreza em que nasceram), casar com um milionário ou, até, fazer carreira política. Pode parecer surreal, mas é verdade: Irene Saéz, Miss Venezuela, depois de ganhar o concurso Miss Universo em 1981 foi governadora de um Estado e chegou a ser candidata à presidência da república em 1988. Numa das sondagens teve 70% dos votos, mas os políticos profissionais não podiam permitir que ganhasse e, depois de várias intrigas, acabou por desistir. Restaram-lhe as duas outras hipóteses: casou com um milionário e hoje dirige um banco em Miami. Mas o facto é que houve um momento em que 70% da população estava disposta a apostar na beleza espampanante dela para dirigir o país.

Como este concursos caíram no ridículo na maioria dos países, agora são sistematicamente organizados na América Central. Este ano aconteceu em Novembro, em El Salvador. A vencedora foi a nicaraguense Sheynnis Palacios, uma belezoca de 23 anos, o que provocou imediatamente grandiosos festejos populares em San Salvador. A população encheu as ruas com bandeiras, carros a buzinar e demonstrações eufóricas de júbilo por esta glória nacional.

Contudo, tal glória não agradou a todos, especialmente ao presidente, Daniel Ortega e à sua mulher, Rosário Murillo, que por acaso é a vice-presidente. 

Não sei se se lembram de Daniel Ortega; foi o chefe da famosa guerrilha sandinista, que fez correr muita tinta nas décadas de 1970-80. Os sandinistas, tal como os castristas, foram ídolos da esquerda-caviar europeia durante essas décadas, vistos como paradigmas da luta contra o imperialismo norte-americano nas pequenas repúblicas da região que liga a América do Norte à do Sul. A banda inglesa Clash até fez um álbum icónico chamado Sandinista em 1980, que vendeu milhões de exemplares.

Os sandinistas também estiveram envolvidos num escândalo político internacional com um caso que ficou conhecido como Iran-Contras. Resumindo uma longa história, descobriu-se que um assessor da Casa Branca, na altura em que Ronald Reagan era presidente, montou um esquema de financiamento das forças anti-sandinistas vendendo armas ao Irão, o que já era proíbido.

O esquema não funcionou, os sandinistas ganharam, e a partir de 2006 Ortega instaurou um regime marxista familiar: ele, a mulher e oito dos seus filhos estão no governo, controlam a petrolífera estatal, as grandes empresas do país e a comunicação social. Nas manifestações pró-democracia de 2018 morreram 350 pessoas e milhares foram presas. Todos os candidatos oposicionistas das eleições de 2021 foram presos e em seguida exilados e privados da nacionalidade. As ONG foram proibidas por serem “agentes estrangeiros”. fecharam-se jornais e universidades. Até um bispo muito popular foi condenado a 26 anos de cadeia.

A bandeira nacional passou a ser vermelha e preta; exibir a bandeira tradicional da Nicarágua, azul e branca, dá direito a prisão. Calcula-se que cerca de 10% da população (600 mil pessoas) tenham emigrado desde 2018.

O que é que isto tem a ver com Sheynnis Palacios? Para começar, na cerimónia da coroação como Miss usou um vestido azul e branco. Depois, apareceram fotografias dela nas manifestações de 2018. Há ainda as questões familiares: uma das filhas de Ortega organizou uma Semana da Moda com dinheiro do governo e Sheynnis não quis participar. Um dos filhos de Ortega é casado com uma ex-Miss Nicarágua, Xiomara Blandino, que não gosta nem um pouco da sua sucessora e quer ser ela a organizar o próximo concurso - como é de regra, deve ser organizado no país da vencedora anterior.

Talvez por isso, a actual organizadora nicaraguense, Karen Celebertti, também caiu em desgraça. Não é difícil; há fotos que a mostram na tal manifestação de 2018. Tanto ela como Sheynnis foram proibidas de voltar para a Nicarágua; além do mais, o casal Ortega teme que a celebridade da Miss ofusque a sua popularidade. Agora vivem as duas nos Estados Unidos.

Finalmente, há a questão incómoda de o concurso ter ocorrido em El Salvador, que é dirigido por um ditador da ideologia oposta, isto é, um populista. Chama-se Nayib Bukele e segue a linha da simpatia, abraços e beijinhos, e pretende ser o pai bondoso dos salvadorenhos. Foi eleito em 2019, e a Constituição proibia um segundo termo. Então, em 2021, Bukele nomeou novos juízes para o Supremo Tribunal (equivalente ao nosso Tribunal Constitucional) que fizeram ligeiras modificações aos seis artigos do documento constitucional, instituindo uma norma original: se o presidente em exercício abdicar do cargo seis meses antes das eleições, já se pode candidatar novamente. Assim, no dia 30 de Novembro Bukele demitiu-se, mantendo o seu esquema de segurança, as residências oficiais e as viaturas, além de todos os outros previlégios do cargo. O Parlamento, onde detém a maioria, aprovou uma lei que lhe permite fazer campanha eleitoral. Para evitar descontinuidade de poder, nomeou para o substituir durante o interregno a sua secretária, Claudia Juana Rodríguez de Guevara, que por acaso  já trabalhava com ele na sua empresa de publicidade antes de entrar para a política.

Não será necessário aldrabar as eleições: as sondagens dão-lhe 70% de preferência. Não admira, uma vez que ele é um especialista em relações públicas. Na noite em que se demitiu, colocou a primeira pedra num estádio monumental financiado pelos Chineses. Dois dias antes, numa reunião do Gabinete televisionada em directo, mandou o procurador-geral investigar os seus ministros para ver se há casos de corrupção, afirmando: “Não quero ser lembrado como um presidente que não rouba mas está rodeado de ladrões”. 

Além disso, Bukele organizou uma perseguição encarniçada contra os gangs que dominavam o país e o crime baixou significativamente durante o seu mandato. É verdade que as organizações de direitos humanos falam de métodos violentos na operação, mas os nicaraguenses não se preocupam comessas minudências, uma vez que se sentem mais seguros. 

Não admira que Ortega, com um estilo tão diferente, não goste de Bukele. Também não admira que Sheynis, com a sua mania de usar azul e branco, o irrite.

Finalmente, não surpreende que Ortega e Bukele mal se falem. Afinal, são dois tipos de ditadura em confronto. Transpondo para a Europa, é como comparar o estilo Lukashenko com o estilo Orban.

Pensando bem, não é uma boa ideia fazer comparações entre o que se passa desde sempre na América Central e o que se passa na Europa. O passado duma pode servir de inspiração para a outra...