A grande diferença entre o resgate em curso da Caixa Geral de Depósitos e o de um banco privado é que neste último caso os accionistas podem decidir não ir "a jogo", recusar o aumento de capital e, com isso, atirar o banco para o colo - e o bolso - dos contribuintes.

Com a Caixa, banco público, fica tudo em família logo à partida. Os accionistas finais e os contribuintes são uma e a mesma entidade e, portanto, as duas opções são apenas uma: ou pagam ou pagam.

Dir-se-á que, no caso da Caixa, estamos pelo menos a capitalizar uma empresa que "é nossa". Isso só em parte é verdade. No passado a Caixa foi mais "deles" do que "nossa". Deles, entenda-se, empresários, políticos e amigos de políticos que fizeram do banco público o bordel financeiro que se sabe, de agência de emprego a balcão de financiamento a fundo perdido.

Vamos ter a esperança que a classe política queira, pelo menos para efeitos de registo histórico, perder um pouco de tempo a separar o trigo do joio desse passado para percebermos quem, como e em quanto beneficiou do banco público para interesses privados.

É precisamente nestes momentos que começamos a ter saudades dos velhinhos PCP e Bloco de Esquerda, sempre atentos e vigilantes a tudo o que tivesse um aspecto mais duvidoso nos negócios, fossem eles públicos ou privados. E, convenhamos, ocasiões não faltaram para deixar a extrema esquerda carregada de razão quando falava da "economia de casino" e das "negociatas do grande capital". Os capitalistas estão a conseguir em poucos anos o que o marxismo não conseguiu em dois séculos: destruir o capitalismo.

Mas o poder produz estes milagres. Mudam-se as posições e tudo muda com elas. A brandura e a compreensão com que comunistas e bloquistas aceitam agora que vá mais dinheiro para a banca chega quase a ser enternecedora. Sim, é para a Caixa, banco do Estado. Mas não exigem sequer saber porque é que o banco do Estado precisa de quase 4.000 milhões de euros dos contribuintes? Não era suposto que o banco público, só pelo facto de o ser e com todas as virtudes daí decorrentes, dispensasse estas ajudas típicas de "gangsters financeiros"? Não vão querer apresentar facturas a Joe Berardo, Manuel Fino ou Armando Vara?

E o envolvimento de capitais privados no plano de capitalização? São mil milhões de euros em obrigações subordinadas. É dinheiro que virá dos grandes grupos financeiros mundiais - até pode vir do Goldman Sachs, quem sabe… -, de fundos de investimento "agiotas", de fundos de pensões privados que transformam a Segurança Social "num negócio". Vamos todos pagar juros a esta gente por eles colocarem capitais especulativos na Caixa e ajudarem a viabilizar o plano de recapitalização?

Aguarda-se também uma posição forte contra os 700 milhões de euros que estão reservados para pagar indemnizações na dispensa de trabalhadores. Sim, serão saídas negociadas que poderão chegar a 3000 funcionários, mas sempre nos habituámos a ter no Bloco de Esquerda e no PCP dois intransigentes defensores do emprego, da manutenção dos postos de trabalho existentes e da criação de mais. Ainda que patrões e empregados possam estar aparentemente de acordo sobre a rescisão dos contratos, restam sempre dúvidas sobre a pressão e a eventual coação que possam existir para reduzir a folha de salários.

E é assim que vamos assistindo à "normalização" do Bloco e do PCP.

Nos últimos anos, quando havia um crescimento económico de 1,1% o PCP dizia que isso era "apenas o abrandamento do ritmo da recessão". Agora o PIB cresce um quarto desse valor e não se ouvem os comunistas. Quando a taxa de desemprego começou a cair dizia-se que "os números do desemprego reflectem cada vez menos a realidade do mercado de trabalho". Imagina-se que agora, por mágica, os números que são calculados da mesma forma pelas mesmas entidades, já sejam verdadeiros.

E a forma como ambos os partidos reagiram ao caso das viagens de membros do governo a convite da Galp são, nesta matéria, o teste do algodão: o exercício do poder desfigura muita gente.

É "realpolitik", dir-se-á. Alguns fins considerados mais importantes obrigam a muito contorcionismo nos meios. É possível. Mas não deixa de ser perturbador que padrões éticos e de separação de águas que pareciam tão exigentes e tão diferenciadores dos partidos do "arco do poder" possam cair, afinal, à primeira necessidade de circunstância.

Provavelmente, a grande diferença que nestas matérias nos habituámos a constatar entre o BE e o PCP, por um lado, e o PS, o PSD e o CDS, por outro, não está na ideologia nem na "massa" de que são feitos os homens e mulheres. Está apenas no poder que se tem ou não.

Outras leituras

Aqui ao lado, em Espanha, há quase um ano que não há um governo em plenitude de funções. E, olhando para a economia, até não está a correr mal de todo…