Há políticos que acreditam que não devem explicações a ninguém, que responder a perguntas é um enfado, um frete que não estão dispostos a fazer. Nem quando as questões são escritas se dão à maçada de retribuir, mesmo que com a desculpa de não ser oportuno, possível ou outro pretexto esfarrapado qualquer.
Os políticos de que falo têm a arrogância de decidir como, quando, sobre o quê e a quem dão satisfações. Esquecem-se - eufemismo para "borrifam-se" - que é exactamente porque têm o poder público que podem e devem ser escrutinados, porque uma democracia impõe (e pressupõe) que as decisões sejam examinadas, discutidas e criticadas pela opinião pública. E quem as toma também.
Como se não bastasse, brindam-nos com uma “Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital”, título catita da Lei 27/2021 de 17 de Maio, aprovada pela Assembleia da República, e que abre caminho ao regresso da censura, sob a capa de "Direito à protecção contra a desinformação" (Artigo 6.º), como se houvesse uma censura boa e uma censura má.
Ninguém votou contra o diploma proposto pelo PS, embora alguns partidos - PCP, PEV, Chega e IL - tenham optado pela abstenção, que é como quem diz, por lavar as mãos como Pilatos, porque fugir das responsabilidades é mais cómodo do que tomar decisões difíceis.
Calar também é desinformar e pode muito bem contribuir para "enganar deliberadamente o público", como diz a lei. Se não para enganar, pelo menos para deixar na ignorância - o que, na prática, vai dar ao mesmo.
Mas ainda ninguém fez uma lei para os políticos e titulares de cargos públicos prepotentes e aquilo que eles calam. E são muitos, do primeiro-ministro, António Costa, ao líder da oposição, Rui Rio, passando por deputados, autarcas, responsáveis de empresas e institutos públicos, entidades reguladoras e de supervisão.
A Constituição da República Portuguesa, no artigo 268.º, dá aos cidadãos "o direito de ser informados pela Administração, sempre que o requeiram, sobre o andamento dos processos em que sejam directamente interessados, bem como o de conhecer as resoluções definitivas que sobre eles forem tomadas", e ainda "o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos". E até estabelece prazos de resposta.
Mas ainda por estes dias, a propósito da partilha pela Câmara Municipal de Lisboa de dados de manifestantes anti-Putin com a Rússia, ficou a saber-se que entraram queixas formais na CML, no Ministério da Administração Interna e no Ministério dos Negócios Estrangeiros, que nem responderam.
No papel parece fácil, na prática é bem diferente. Que o diga a CADA, que todos os meses elabora dezenas de pareceres relativos a pedidos de acesso a documentos administrativos, na maioria das vezes favoráveis aos queixosos, muitas vezes jornalistas.
Também a Lei de Imprensa, logo no Capítulo 1, sobre Liberdade de Imprensa, deixa o tema claro: "A liberdade de imprensa abrange o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações".
Só que a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital (não consigo não rir sempre que escrevo este título) esquece a parte "de se informar e de ser informado". Que é, quase sempre, a tarefa mais complicada, uma espécie de prova olímpica de 2000 metros obstáculos, em que é preciso saltar 18 vezes uma barreira e cinco vezes um fosso.
Os obstáculos podem ser os mais variados, de telefones a e-mails, passando por secretárias e assessores, até à burocracia ou aos visados. Um dia escreverei um artigo sobre as perguntas que nunca tiveram resposta: do primeiro-ministro, de ministros, de deputados, da oposição, de governadores do Banco de Portugal.
Ao mesmo tempo que têm este comportamento, os governantes vão propondo - e a Assembleia da República vai aprovando - estratégias anticorrupção, entidades da transparência e comissões de tudo e de nada. A chamada areia para os olhos - ou ciência do faz-de-conta.
Melhor seria se, em vez de fazer leis sobre desinformação, os políticos tratassem de informar convenientemente, e isso não é fazer propaganda, é sujeitar-se ao exame público, a começar por dar resposta às questões que lhes são colocadas.
De resto, o que dizer desta informação tão contrária à realidade prestada por políticos ao longo do último ano:
- Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, garante em entrevista à TVI que Portugal se tem aproximado do objectivo dos 2% em despesas militares. Em 2019, apenas a Estónia cumpriu esse objectivo a atingir até 2024.
- Medina diz que Lisboa terá 6000 casas de renda acessível até Setembro/Outubro, mas CML entrega 392;
- Siza Vieira afirma no Parlamento que "em 2019, 23 mil empresas encerraram. Em 2020 foram menos as que encerraram", mas números do INE mostram que em 2020 foram dissolvidas menos 87 empresas do que em 2019 e constituídas menos 10.951. Total empresas abertas em 2020: 36.541. Total de empresas abertas em 2019: 47.492 empresas. Total de empresas encerradas em 2020: 16.941. Total de empresas fechadas em 2019: 17.028.
- António Costa afirma que “depois do treino que fizemos este ano lectivo [2019/20], estamos preparados para desempenhar ainda melhor o próximo". Não estavam, como se percebeu no ano escolar a decorrer;
- Ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, anuncia computadores para todos. O programa Escola Digital continua por cumprir;
- Ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, nega sobrelotação nos transportes públicos e risco acrescido de contágio de Covid-19. Realidade e peritos mostram o contrário;
- Ministra da Saúde, Marta Temido, garante vacina contra a gripe a todos os que a quiserem tomar. Faltaram vacinas.
- Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, garante que todos terão acesso à vacina da gripe. Não tiveram.
- Assembleia da República aprova decreto para agilizar contratação pública. No Parlamento, o deputado do PSD Jorge Salgueiro Mendes afirma que comissão terá custo zero. No entanto, o diploma prevê remunerações.
- PS divulga gráfico nas redes sociais. Foi em Fevereiro, pouco antes de Portugal ter os piores números da União Europeia em matéria Covid-19;
A lista é infindável e abrange os mais diversos temas. O Estado que "incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública" à comunicação social é o mesmo que cala e contribui tantas vezes para desinformar (e até paga para serem produzidas notícias, como define o contrato celebrado pela presidência portuguesa do Conselho da União Europeia com a agência Lusa, no valor de 98.813€). Gostaria de saber que selo atribuiria o governo a tudo isto.
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