Duas breves ressalvas iniciais: uma, deixemos de lado o sentido de oportunidade desastradamente mórbido da aprovação da legalização da eutanásia em plena vigência pandémica (embaraço democrático que mereceria tratamento específico); e outra, assumamos, sem birra preconceituosa, a bondade de ambas as posições conflituantes: nem caçadores de velhos aqueles que votaram a favor nem sádicos inconfessados aqueles que votaram contra. Como demonstram os sentidos de voto de PCP (contra) e IL (a favor), a questão da eutanásia, embora não esteja isenta de abordagens ideológicas, furta-se, quando levada a cabo e levada a sério, às amarrações dos espartilhos partidários. As questões inerentes à vida humana – e, neste caso, ao seu fim, no duplo sentido de conclusão e escopo – comportam um estatuto digno da mais elevada reverência ética: a reflexão bioética não termina onde começa a aprovação de uma lei.

Aprovada a lei, não estamos dispensados de convocar o escrutínio sucessivo de um perigo que está no âmago do problema (uma espécie de lei interna da lei aprovada), no sentido de tornar a lei o menos favorável possível à ameaça que, antecipo, começará a rondá-la logo a partir do primeiro dia: a inevitabilidade da rampa deslizante. Iniciada a descida, é sempre a descer. É pelo focinho que o camelo entra na tenda e é aceitando a oferenda do cavalo («e de soldados enchem todo o ventre», segundo a Eneida) que Tróia acaba invadida e incendiada: Equo ne credite, Teucri!, «Não confiem no cavalo, Troianos!», terá sido o aviso, vão, de Laocoonte. Começamos agora com o chiar manso do cavalo de Tróia e, deslizando inevitavelmente pela rampa abaixo, acabaremos com a troada impaciente da cavalgada das Valquírias.

A forma lógica do argumento da rampa deslizante parece conduzir-nos directamente do cavalo de Tróia à cavalgada das Valquírias, isto é, do restrito ao irrestrito, do excepcional ao costumário, da eutanásia voluntária à eutanásia não-voluntária, da doença terminal à doença crónica, do sofrimento físico ao sofrimento psicológico, da dor insuportável e irreversível ao «cansaço de viver», dos velhos às crianças: «Se os destinos dos deuses não tivessem / com a nossa loucura atordoado / aqueles que ali estavam, logo nós / quebrávamos aquele esconderijo. / Ainda hoje de pé estaria Tróia / com de Príamo altivas as muralhas».

Começando hoje por ser «voluntária» («a pedido»), a eutanásia dificilmente poderá ser travada e circunscrita aí amanhã. Como, em última instância, é o juízo do médico (que não é um mero robot executor de pedidos de morte mas um avaliador profissional das condições do pedido), e não o pedido do paciente, o factor decisivo na determinação da «indignidade» da(quela) vida, a seguir nada obsta seriamente – uma vez que afinal o juízo do médico prevalece sobre o pedido do doente – que num futuro mais ou menos próximo o juízo do médico venha a decidir também, prevalecendo, sobre um não-pedido de um doente em estado de «indignidade»: uma vida ou é indigna porque o seu portador individual assim a avalia (o que autoriza necessariamente todos os tipos de pedido suicidário e não apenas aqueles que a lei consente: quantos sofrimentos, e abusos, cabem no conceito de «sofrimento intolerável»?) ou é indigna porque o juízo médico assim o estabelece (o que torna desnecessária a existência de um pedido e escancara a porta a todo o tipo de abusos e pressões, familiares e/ou médicos, desde cálculos mercenários de heranças naqueles à diminuição dos custos com cuidados paliativos nestes). O «a pedido» é hoje apenas o focinho do camelo: a eutanásia não-voluntária parece ser o corolário lógico da voluntária.

E como a forma empírica do argumento dificilmente poderia violar a sua forma lógica, a Holanda e a Bélgica (dois dos três países europeus onde a prática já vigora) parecem confirmar suficientemente (a Holanda e a Bélgica já autorizam a eutanásia de crianças e os casos admissíveis – depressão crónica, anorexia nervosa, demência, etc. – sucedem-se e alargam-se) a tendência necessariamente expansionista da aplicação inicialmente restrita da lei: «from so simple a beginning endless forms» é a famosa expressão com que Darwin conclui A Origem das Espécies e que, na verdade, serve tanto para organismos biológicos como jurídicos: as leis, como os tentilhões das Galápagos, visam a sua própria reprodução, a sua própria descendência: «descender com modificações», é assim que Darwin define evolução. Um cavalo é apenas a incubadora transitória em que uma cavalgada dá à luz outra cavalgada.

Foi esta verdade que Wagner intuiu talvez (criando para o efeito a «Tuba Wagneriana» inaugurada justamente para o ciclo O Anel dos Nibelungos) na célebre «Cavalgada das Valquírias» ao narrar o transporte dos mortos para o além-mundo: as Valquírias, a cavalo, carregam os heróis tombados em combate para os quartos de Walhala, o «Salão dos Mortos» da mitologia nórdica. Gerhilde, Ortlinde, Helmwige, Schwertleite, Waltraute, Siegrune, Grimgerde e Rossweisse, de acordo com os preceitos mitológicos a que Wagner confere um inconfundível timbre de violência sagrada não totalmente estranha às nossas execuções a pedido, reúnem-se numa montanha, cada uma com o seu cavalo, cada uma com o seu herói morto: os «Hojotoho! Hojotoho! Heiaha! Heiaha!» do chamamento das Valquírias combinam bem, ainda que de forma quase hipnótica, com a atmosfera de extinção e morte de que a neblina se apodera.

Na montanha mitológica como no hemiciclo moderno, exala, de toda a aprovação de um fim, uma sensação, estranha e entranhada, de ocaso, de decadência, de desistência, de «crepúsculo» (para não sairmos do imaginário wagneriano). Aprovar um fim parece sugerir uma ritualização de rendição, como se a comunidade, na figura débil daqueles que admite executar depois de lhes ter falhado em garantir os cuidados do corpo e as assistências da alma, estivesse a dar também deferimento, por sinédoque, ao pedido da sua própria abolição.

Quando finalmente a atrasada Brünnhilde se junta às suas irmãs Valquírias no topo da montanha enevoada, desce do cavalo fazendo jus ao seu nome (formado a partir de dois elementos derivados das palavras brunni + hild, que significam, respectivamente, «armadura, protecção» + «batalha, luta»,): Brünnhilde, a amazona protectora, traz consigo, despertando o pavor das suas irmãs e a fúria do deus da guerra, não um homem mas uma mulher. Primeira desobediência capital. Segunda, que lhe valerá a medida máxima do castigo de Wotan: Brünnhilde não traz uma morta – mas uma viva: «Grimgerde! Gerhilde! Arranjem-me um cavalo! Schwertleite! Siegrune! Vejam o meu desespero! Sejam leais comigo como eu tenho sido convosco: salvem esta mulher infeliz!»

Salvem esta mulher infeliz.

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