Ninguém ficou indiferente ao pedido de ajuda da Constança Braddell, a jovem de 24 anos que gritou um assustador “Não quero morrer!”. A Constança viu o seu estado de saúde deteriorar-se a uma velocidade preocupante até estar em risco de entrar na lista de transplantes pulmonares. E revoltou-se com o facto de haver um medicamento aprovado pela Agência Europeia do Medicamento (EMA,  mas não pelas entidades reguladoras em Portugal (INFARMED). Como cientista, e principalmente investigadora na área da Fibrose Quística, assisti a este despertar de atenção com alguma esperança. Esperança que finalmente se falasse desta doença. Desconhecida para a maioria, mas que altera e restringe a vida para tantas pessoas.

A Fibrose Quística é uma doença genética causada por mutações num único gene - o gene CFTR -, que codifica para uma proteína que funciona como canal de iões cloreto. Para a doença se manifestar é preciso herdar uma mutação do pai e outro da mãe. Até hoje, estão descritas aproximadamente 2200 mutações, em que a F508del (uma deleção no aminoácido F508) é a mais comum. A doença é caracterizada por uma acumulação de muco extremamente viscoso que bloqueia sobretudo as vias respiratórias e que leva a infeções recorrentes nos pulmões e, no pior cenário, à morte precoce.

Para ultrapassar a falta da CFTR e todos os sintomas que estas pessoas têm ao longo da sua vida, são usados agentes mucolíticos e fisioterapia peitoral (cinesiterapia) diária para libertação do muco espesso das vias respiratórias, antibióticos para combater as infeções, suplementos enzimáticos para a digestão dos alimentos, vitaminas e outros suplementos alimentares para contrariar o baixo peso e estatura, agentes anti-inflamatórios para fazer face a processos inflamatórios crónicos, etc. Tratamentos diários, complicados, e feitos desde que os bebés nascem ou são diagnosticados. O que implica uma menor qualidade de vida, tanto para as pessoas que têm a doença, como para os seus familiares. Como a Constança e outros referiram, subir escadas, trazer compras, ou até trabalhar ou brincar tornam-se tarefas impossíveis. Além disso, estas pessoas vivem com a ansiedade de terem uma esperança média de vida de aproximadamente 40 anos. E isto tudo, sabendo que no outro lado do oceano ou em países vizinhos europeus têm disponíveis os chamados moduladores da CFTR, medicamentos que atuam no defeito básico da Fibrose Quística e que foram descritos como “life changing”.

Existem, na verdade, três medicamentos moduladores da CFTR aprovados em Portugal (Kalydeco®, Orkambi® e Symkevi®, todos eles da Vertex Pharmaceuticals, que custam cerca de 180mil euros/ano/pessoa), cada um destinado a um grupo específico de doentes (dependendo das mutações que cada doente tem). No entanto, o tão falado Kaftrio® apresentou resultados extraordinários, e em nada comparado com os medicamentos anteriores. Médicos e pacientes descreveram os efeitos deste medicamento como “incrivelmente rápidos” e “transformadores”. Em Portugal, pessoas que tiveram acesso a este medicamento através de programas de acesso precoce explicaram como sentiam que “finalmente podiam sonhar com um futuro e uma vida normal”. E isso enche estes cerca de 400 doentes portugueses de esperança, mas também de revolta, por sermos um dos únicos países da Europa ainda sem acesso a este medicamento. A Associação Nacional de Fibrose Quística (ANFQ) e a Associação Portuguesa de Fibrose Quística (APFQ), assim como os diretores de serviços diretamente envolvidos, têm feito um esforço coletivo para que a aprovação destes medicamentos pelo INFARMED seja feita o mais rapidamente possível, e que não leve o tempo que os medicamentos anteriores (por exemplo o Orkambi® levou cerca de 2 anos a ser aprovado em Portugal).

A dura realidade é que mesmo após a aprovação do Kaftrio® em Portugal, existe uma parte deste grupo de 400 pessoas que não será elegível, visto que este medicamento apenas está aprovado pela EMA para pessoas com pelo menos uma mutação F508del e com uma mutação sem função (mais severas). Isso excluí à priori alguns doentes com mutações mais raras que veem a esperança que sentiram por breves momentos ser novamente roubada. E foi para encontrarmos alternativas para essas pessoas que o projeto HIT-CF foi desenvolvido. O HIT-CF é um consórcio europeu, financiado pelo Horizonte 2020, que combina esforços de vários parceiros (incluindo o grupo da professora Margarida Amaral no BioISI, onde eu trabalho) na procura de alternativas terapêuticas para indivíduos com mutações raras e ultra-raras, que são frequentemente excluídos dos ensaios clínicos por terem uma representatividade muito baixa e não refletirem um retorno económico necessários às empresas farmacêuticas. Por isso, muitas vezes estas pessoas vêem-se sem qualquer opção terapêutica. E é aqui que o HIT-CF entra. Com o uso pioneiro de organoides intestinais, ou “mini-intestinos”, que são isolados a partir do próprio doente, conseguimos analisar a resposta individual e personalizada a todos os moduladores da CFTR que existem no mercado. Assim, sabemos exatamente qual o medicamento adequado a cada pessoa e que providenciará a maior eficácia clínica.

Foi através deste trabalho que este ano recebi o prémio de Best Young Investigator, atribuído pela Sociedade Europeia da Fibrose Quística, que distingue os melhores trabalhos de investigação nesta área na Europa. Este prémio foi o reflexo de muitas horas de trabalho, que não pararam nem nos confinamentos de 2020 e 2021. O nosso objetivo era analisar organoides intestinais de aproximadamente 500 doentes europeus (entre eles alguns portugueses) e medir o resgate da CFTR através de medicamentos de outras empresas farmacêuticas, que estavam interessadas em fornecer alternativas terapêuticas. Neste projeto estão contemplados dois ensaios clínicos para pessoas que, por terem mutações mais raras, não teriam outra oportunidade de ter acesso a quaisquer medicamentos moduladores. Ao analisarmos as suas respostas previamente, através dos tais organoides intestinais originados de cada paciente, conseguimos prever com maior eficácia a resposta clínica de cada pessoa e aconselhar (ou não) o uso de um determinado medicamento ou a inclusão nestes ensaios clínicos. Desta forma, pretendemos usar os organoides intestinais para analisar previamente a resposta de cada doente com Fibrose Quística no laboratório, para que este não veja as suas esperanças destruídas quando tomar algum medicamento e não tiver qualquer benefício clínico, e para que o Serviço Nacional de Saúde não gaste recursos desnecessários quando um doente não tem pré-disposição genética para responder a esse medicamento.

Posso dizer que como cientista, encontrei na área da Fibrose Quística a simbiose perfeita entre médicos, investigadores e pacientes. Existem muitos médicos disponíveis para facilitarem a cooperação entre os pacientes e os investigadores, para que possamos caracterizar melhor todas as mutações que existem e entender melhor os mecanismos moleculares da doença, e que veem nos investigadores uma ferramenta para prever qual o melhor tratamento para cada paciente. Existem muitas pessoas com Fibrose Quística que veem nos investigadores uma resposta às suas preces, quando existe o desenvolvimento de novos fármacos que dão um novo alento e uma nova esperança de uma vida normal. E existem muitos investigadores que passam horas a fio, sem condições de trabalho dignas, sem serem considerados trabalhadores pelo estado, com apenas um objetivo: encontrar a cura para TODAS as pessoas com Fibrose Quística.

Termino com uma nota de esperança para todas as pessoas com Fibrose Quística: pode ser considerada uma doença rara, mas posso garantir-vos que temos uma comunidade científica e médica sólida e cooperante na procura de melhores terapias, até chegarmos à cura. E esse dia chegará. E enquanto não chegar, cá estaremos para fazermos todos os possíveis para que cada um de vós seja bem diagnosticado, bem acompanhado, que tenha acesso ao medicamento mais adequado, e que possam todos ter a vida que merecem. Obrigada por confiarem em nós.

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