Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.
Uma prima do meu pai tinha o hábito de, quando nos sentávamos à mesa, dividir cada guardanapo em dois antes de distribuir as metades pelos convidados. Na sua própria casa, na casa dos outros ou em restaurantes - estivesse onde estivesse, fazia-o sempre, sem pensar duas vezes. Alguns membros da família, sobretudo a sua irmã, recriminavam-lhe o gesto que ter-lhe-á ficado de outros tempos. Tempos de escassez, dizia-me o meu pai. Às vezes culminava em discussão, mas era mais forte do que ela: sempre que pudesse, iria dividir um guardanapo em dois, ou até em quatro, antes de o distribuir.
Tenho reflectido muito sobre este episódio, que é um entre muitos de quem viveu a ameaça da fome, da morte, ou do medo. O mundo novo pós-confinamento irá testemunhar, aos poucos, novos comportamentos, fruto das mudanças radicais a que temos de nos adaptar, e muitos deles ultrapassarão a nossa actual percepção. É isso que acontece com as adaptações: podem já não ser necessárias, mas mantêm-se na nossa forma de estar e traduzem-se na nossa maleável essência cultural.
Se achávamos que já tínhamos percorrido a maior parte do caminho, a cada dia que passa vamo-nos apercebendo que, afinal, não é só uma questão de semanas, ou de meses, até podermos respirar de alívio. Serão anos. Até lá, vamo-nos agarrando com muita força a todas as consequências potencialmente positivas desta pandemia.
Vamos abraçar-nos mais, dizem. Assim espero, e sei que haverá essa vontade. Mas até ser verdadeiramente seguro abraçarmo-nos despreocupadamente, talvez se enraíze em nós uma tendência para o distanciamento social, ainda que irreflectida.
Quando iniciámos o confinamento, uma consequência que foi posta em cima da mesa, e pela qual os meios sociais se enamoraram, foi o possível aumento da taxa de natalidade. De entre várias projecções, essa era uma que trazia algum alento à população. No meio da tempestade, tentamos que vigore a esperança de um dia soalheiro.
É verdade que após determinadas situações de catástrofe, o ser humano tem propensão para querer trazer mais bebés ao mundo. Por um lado, para assegurar a continuidade da espécie e, por outro, para sentir que a normalidade foi reposta. Esta realidade afigura-se cada vez menos provável quando temos em conta o efeito corrosivo da covid-19 na forma como o mundo gira.
Pessoas que ponderavam constituir família vêem-se obrigadas a adiar esse projecto; para se fazer bebés, não basta aumentar-se a frequência das relações sexuais. Ao verem-se colocadas em causa as condições financeiras, a disponibilidade mental e até a saúde relacional de muitos casais, ter filhos deixa de ser uma prioridade (e até uma possibilidade) num futuro próximo.
Além disso, não podemos ignorar a percentagem significativa da população que lida com infertilidade e que vê interrompido ou inalcançável o processo de procriação medicamente assistida, como fertilizações in vitro e outros que tal. É um processo física, psicológica e financeiramente exigente. Somando a tudo isto, perspectiva-se que a taxa de divórcios aumente e que a saúde mental da população de todo o mundo se fragilize a cada dia que passa. Por isso, pode ser equívoco achar que haverá mais bebés e que vamos ficar todos bem. É sensato considerar que muitos dos bebés que nascerem chegarão com preocupações acrescidas para os seus cuidadores.
Não pretendo ser derrotista, mas faz sentido que, pegando no episódio do guardanapo, nos lembremos de que, nos próximos anos, haverá guardanapos rasgados em centenas, milhares de pedacinhos. Só os conseguiremos identificar com a devida acuidade uma vez que a tormenta tiver passado. Talvez seja necessária uma década. Talvez mais.
No entretanto, vamos fazendo aquilo que sabemos fazer de melhor: adaptamo-nos e levamos um dia de cada vez.
*A Catarina Maia escreve segundo o antigo acordo ortográfico
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