O facto de ainda hoje tal frase ressoar tanto, mesmo que repetida por gente que não distingue uma Cortina de Ferro dum estore em alumínio, leva-nos a crer que o brilhantismo retórico ultrapassou o próprio impacto emocional (alguns dirão demagógico) com que Kennedy galvanizou aquela multidão de alemães ocidentais em 63. Visto daqui do futuro, nem o próprio JFK poderia adivinhar o resumo absolutista e profético das suas palavras. Por muito humilde que fosse a intenção verbalizada naquele alemão bostoniano, Kennedy não era berlinense por pertencer a Berlim, mas porque Berlim lhe pertenceria. Como nunca antes nos Estados Unidos da América, um presidente estava à beira de atingir estatuto icónico sem ser pelos trejeitos invisíveis da construção de lendas, antes sim pelos processos muito visíveis da mediatização audiovisual. Câmaras na sua cara, o mundo a seus pés.
Quer por via folclórica, quer por via de exacerbação literária, os gigantes americanos - pioneiros, founding fathers, presidentes - conheciam em JFK um contraponto quase sem precedentes: da grandeza maior que a vida, passava-se à grandeza conferida por se caber numa caixa pequena – a televisão. A narrativa política americana tornava-se assim tanto um reflexo como um gerador da cultura de entretenimento. O cinema, a tv, a música, mesmo quando desalinhados, floresciam no contexto de prosperidade que era um retrato domingueiro dos próprios Estados Unidos; uma nação construída por homens de acção via-se também a ser construída por argumentistas. O entretenimento, a política, a religião, o capitalismo, tudo encaixado e às vezes indistinto; tudo o soporífero eficaz para os medos da Guerra Fria – primeiro acalmou os alarmismos internos, no fim adormeceu o próprio conflito.
De súbito nos E.U.A. todas as coisas eram propaganda. Tanto o que tentava sê-lo, como o que não tinha premeditação: propaganda invariavelmente. Tudo era panfletário na medida em que detonava uma bomba de inacreditável alcance: o proselitismo mediatizado do american way of life. Desde então assistiu-se a um país que auto-valida as suas convicções através da maneira eficaz como as reproduz, as cria e as dissemina na cultura popular. Estava o sonho americano culminado numa Liberdade epidémica. Era-se aparentemente livre em todos os espectros, tanto em idiotices retrógradas como em vanguardismos, direitos de disparar e direitos de nada dizer. As costas da Liberdade são mais largas que as da estátua com o mesmo nome, e tanto albergavam a gravata do liberalismo nos mercados, como a boina afrancesada dos libertinos beat. Hippies, soldados, Elvis, Lee Harvey Oswald, cowboys, Flinstones, foguetões...faces de várias moedas, mas dos mesmos projectores, ecrãs, quadradinhos, telefonias. A cultura pop do país/ o país da cultura pop.
Embora compreenda as razões históricas da recorrente caracterização do Presidente dos Estados Unidos enquanto “Líder do Mundo Livre”, soa-me sempre a patacoada. A terminologia tresanda a presunção, tanto que é exclusivamente usada por estadunidenses; só que deixo cair as objecções à expressão mal equiparo “Mundo Livre” a “mundo mediatizado”. É algures por aqui que o mais alto dignitário do “mundo mediatizado” se pode declarar berlinense, madrileno, paço-arquense ou escalabitano. Dar chaves da cidade tornou-se uma cerimónia obsoleta desde que se começaram a entregar molhos de antenas de televisão.
Das comédias de situação aos funerais de Estado, os formatos e os conteúdos dos média americanos eram as evidências mais ignoradas duma superpotência em ascensão. Estavam prontos a desembarcar em todo o lado, conquistar sem dividir, tornarem-se o paradigma cultural pop do resto do Ocidente e mais além. Em cada bilhete de cinema, um green card; em cada acorde de rock’n’roll um “Star-Spangled Banner”, hino dos colonizadores. O quotidiano americano, mesmo quando distante e excêntrico, entretecia-se no imaginário das outras nações. Já não era só a língua a ser franca, a memória também assim se codificou. Passou a intercomunicável, referencial, global.
Ter-se-á o mundo rendido? Não, alistou-se. A revolução pop era tão imparável quanto tinha sido a revolução industrial, igualmente barulhenta e só talvez mais furtiva na implementação. A filiação nestas americanices é por de mais patente quando o discurso antiamericano básico parece o estrebuchar adolescente de emancipação contra um pai tirano. E não é que a polinização mediática tenha eliminado as culturas nativas, mas moldou-as, às vezes perto da desvirtuação. A exemplo disso, basta pensar que o interesse pelo nosso folclore está quase reduzido a erudições etnográficas; até o recente enamoramento por estéticas do passado português é motivado pelas tendências saudosistas globais; na gastronomia, no artesanato, no turismo, o que for: recupera-se, promove-se, cuida-se e entesoura-se o de cá, porque é o que os de lá também andam a fazer.
É exactamente pelo nosso quintal não ser só o limite geográfico das fronteiras portuguesas que, com legitimidade, estamos tão atentos às eleições americanas. Opinamos como se aquele espectáculo mediático também nos pertencesse. E pertence. E pertencemos-lhe. É à boleia da actualidade no embate Hillary vs Trump que justifico a minha crónica, mesmo que reserve ao tema das eleições apenas uma curta apreciação (explicarei no final a curteza). Entre Guterres e taxistas, os últimos dias ficaram também marcados pelo surgir dum vídeo de Donald Trump, datado de 2005, com comentários assustadoramente machistas. Ora, previno que o vou fazer é um elogio a Trump e uma crítica à cobardia dos republicanos que lhe retiraram o apoio após a divulgação das frases escandalosas.
Por partes; primeiro o elogio. Custa-me aceitar a dimensão da onda de choque motivada pelo vídeo da polémica. Como é que alguém ainda se choca com palavras rasteiras ditas em privado, quando as palavras públicas do candidato são raras vezes menos rasteiras? Foi mesmo preciso escarafuncharmos em 2005 para nos lembrarmos que Donald tem sido ignóbil em 2016? Daí o meu elogio: Trump é de notável coerência, até nas incoerências; sabemos com o que podemos contar, e nunca é bonito. Quanto aos republicanos que lhe retiraram o apoio, critico. Até parece que não houve 1001 justificações anteriores para que o fizessem. Esperar por esta reprovação mais mediática deixou-me desapontado, sobretudo com alguns membros do Partido Republicano que tinha em melhor conta. Só no momento de deserção é que me apercebi quem vinham apoiando. Foi tarde.
Este super-incidente é um não-incidente e em nada influenciará a votação. Poucos simpatizarão mais com Hillary (que, se não tem telhados de vidro na matéria, tem de zinco estridente) depois disto, e os admiradores da frontalidade bruta-montes trumpiana nem pestanejaram. Ainda assim estou confiante de que Trump vai perder as eleições. Temo que seja mais desejo pessoal do que opinião esclarecida, pois quero muito que ele perca. Acontece que se isto andasse a reboque da minha vontade, Mrs Clinton também não teria grandes hipóteses.
Guardei Trump para o fim, e com poucas palavras, porque foi nisso que o milionário se tornou: uma punchline. Ele já era da cultura pop e agora ainda mais o é, mas jamais será ein Berliner - quem provou bolas de berlim do Natário, em Viana do Castelo, sabe que nem para isso Trump tem categoria.
Sítios certos, lugares certos e o resto:
Uma das mais recentes produções da Netlfix é a série que adapta a personagem dos comics da Marvel, Luke Cage e trata-se de um produto televisivo surpreendente. Apesar de nem sempre escapar aos clichês mais incómodos do género de super-heróis, a outros lugares comuns e a uma consistência narrativa volúvel, poucas séries terão abordado de maneira tão inteligente e rica a cultura negra dos E.U.A, sobretudo do Harlem. Impressiona a introdução de referências históricas e populares de uma forma perfeitamente harmoniosa, quer nos diálogos, nos lugares ou na psique dos personagens. O bairro, a família, a religiosidade, a sobrevivência, a violência, a música. Sobretudo a música! A banda sonora e os cameos musicais são de um luxo que não se fazia esperar.
No Jornal de Letras Eugénio Lisboa olha para Régio a ver Sá Carneiro. A provar que o amor, na literatura, não está só na capacidade de ser descrito, também está na devoção da leitura.
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