Até à data, a rainha Vitória, que reinou 63 anos (de 1837 a 1901) durante o auge do Império Britânico, onde o “sol nunca se punha”, era o símbolo máximo do modelo imperial europeu. Isabel, completamente diferente, bateu o recorde: já é monarca desde 1953, ou seja, há 68 anos. Mas as diferenças não são só de personalidade; ou longevidade. Vitória presidiu à ascensão e hegemonia do Império, enquanto Isabel reinou durante a sua decadência e dissolução. No entanto, ambas assumiram muito bem o seu papel, o que foi certamente mais difícil para Isabel, que assistiu a mudanças abissais na ordem mundial e na vida privada da família real.
Não deixa de ser interessante que Isabel Alexandra Maria não estivesse destinada a ser rainha; quando nasceu, em 1929, era terceira na linha de sucessão. O monarca reinante era seu avô, Jorge V, e o seu legítimo sucessor o futuro Eduardo VIII, seu tio. Mas Eduardo governou por pouco tempo, abdicando do trono para se casar com uma americana divorciada, Wallis Simpson, uma coisa nunca vista. Assim, o pai de Isabel e irmão mais novo de Eduardo tornou-se o rei Jorge VI, passando automaticamente Isabel a herdeira do trono. Em 1937 conheceu o príncipe Filipe, de ascendência dinamarquesa e grega que, entretanto, se nacionalizou inglês por ter participado na II Guerra Mundial como oficial da marinha britânica. Em 1947 ficaram noivos, o que causou um certo desconforto na casa real, uma vez que ele não era nascido inglês e tinha parentes nazis. Por mais estranho que hoje isso nos possa parecer, a Grã-Bretanha desses tempos era ultraconservadora, cheia de pruridos nacionalistas e morais, e não se refizera ainda do “escândalo Simpson”. (Eduardo e Wallis eram tidos como simpatizantes de Hitler; diz-se que, se a Inglaterra fosse invadida, seria ele o escolhido pelo ditador nazi como rei-fantoche. Pelo sim, pelo não, Churchill mandou o casal para as Bahamas durante a II Guerra Mundial.)
Assim, antes do casamento, Filipe renunciou aos seus títulos gregos e dinamarqueses, converteu-se à Igreja Anglicana e passou a chamar-se Comandante Philip Mountbatten, o apelido inglês da mãe. Com o casamento, em Novembro de 1947, ganhou o título de Duque de Edimburgo e o tratamento de Alteza Real. É curioso notar que os primos alemães de Filipe bem como o ex-rei Eduardo VIII, não foram convidados para a cerimónia.
Os reis ingleses, como sabemos, não têm qualquer poder, desde que Carlos I se desentendeu com o Parlamento e foi decapitado, em 1649. O seu filho, Carlos II (casado com a “nossa” Catarina de Bragança), subiu ao trono em 1660 com a condição de reinar e não governar. (Deve ser daí que vem a nossa expressão “estar a reinar”.) Mas o rei, ou rainha, representa institucionalmente o país, com um papel cerimonial importante. Para os ingleses, representa o Poder, que na prática reside no Parlamento e, por extensão, no Primeiro-ministro. Quando o rei faz o chamado Discurso da Coroa, definindo a política inglesa, usa a expressão “o nosso Governo decidiu que...”. O Governo responde perante o Parlamento e apenas comunica ao rei o que foi decidido, sem que este possa sequer emitir opinião pública. Basta dizer, a título de exemplo, que não se conhece nenhum comentário de Isabel II sobre o Brexit; nem contra, nem a favor, nem antes pelo contrário.
Mas então, o pai de Isabel, que era um fumador inveterado – e gago, como todos ficámos a saber no filme “O discurso do Rei”, com Colin Firth – morreu prematuramente em 1952, estavam Isabel e Filipe em viagem oficial ao Quénia. Regressaram imediatamente e ela foi coroada em Junho de 1953. Segundo a tradição, a casa real deveria ter o nome do marido, Mountbatten, mas ela decidiu manter Windsor, um apelido escolhido em 1917. (Anteriormente o apelido era alemão, Hanover, o que não combinava bem com os sentimentos anti-germânicos da I Guerra Mundial.) Esta decisão levou Filipe a dizer, com o seu habitual humor inconveniente, “Sou o único homem na Grã-Bretanha que não pode dar o seu apelido aos filhos.” Se soubesse com antecedência, provavelmente não lamentaria tanto, uma vez que os filhos do casal, Charles, Anne, Andrew e Edward, só viriam a dar aflições...
Durante o seu longo reinado, Isabel tem assistido a mudanças universais, nacionais e familiares que deixariam qualquer pessoa desatinada. O mundo mudou muito nestes sessenta e tal anos, desde os discursos na rádio, às redes sociais, do “é proibido proibir”, ao “politicamente correcto”. O Império Britânico, com o seu orgulho altaneiro, converteu-se num país europeu médio com problemas económicos e sociais insanáveis — para não falar num fala-barato como Primeiro-ministro e grandes probabilidades de se fragmentar em quatro (Escócia, País de Gales, Irlanda e Inglaterra). E a família, os “royals”, como são chamados pelos súbditos, passou por uma série de escândalos sentimentais, sexuais e sociais, turbinados sem dó por uma imprensa tablóide feroz que não existe em nenhum outro país, nem nos mais desmoralizados.
Quanto a Filipe, que acaba de morrer, toda a gente o considerava um amor de pessoa, um pouco inconveniente nos seus comentários com o proletariado mas, em geral, cumpridor do seu papel de consorte, literalmente. As más-línguas e os tais tablóides sempre rascas, falam de várias amantes, como Sacha Hanilton, duquesa de Kirkwood e Penny Knatchbull, amiga da rainha, até à famosa escritora Daphne du Maurier, cujo marido trabalhava para os "royals". Nada se provou e está tudo esquecido. O senhor conseguiu passar por esta vida com todo o conforto e a melhor reputação, sempre muito chique e institucional.
A questão presente é a de saber como sobreviverá Isabel à ausência do companheiro de décadas, que certamente lhe deu apoio nas alturas mais difíceis, como quando o filho e a nora tiveram um divórcio público e pecaminoso, ou as obrigações oficiais a obrigaram a ser visitada por Ceausescu ou a visitar Salazar. Isabel sempre soube ser discreta e dizer as frases certas para cada ocasião. Certamente ajudada por uma entidade muito eficiente, o Kensington Palace, que se encarrega de todas as questões protocolares e sociais. Centenas de pessoas lá trabalham, desde os relações públicas aos gestores dos vários palácios com dezenas de salas e pessoal. Mas tem a marca dela, uma maneira de ser, materializada nas toilettes únicas — as cores gritantes servem para ser vista à distância — a malinha pendurada no braço cheia de simbolismo ou ainda o olhar firme, um pouco vago. (Sobre o que conterá a malinha, há discussões intermináveis...)
Isabel sabe receber igualmente bem americanos como Obama, Jacklyn Kennedy — num ambiente de tensão — o impertinente Trump, régulos totalitários dos países da Commonwealth, e comunistas como Bulganin e Khrushchev. Tem um savoir faire notável, considerando o seu poder nulo e posição proeminente.
Quando Isabel falecer, acaba a inglesice clássica, aquela que os outros países sempre respeitaram e odiaram, simultaneamente. Charles, um poseur que usa três assistentes para escolher a roupa que usa diariamente, não tem essa postura. A monarquia não acaba, porque os ingleses não teriam onde usar o seu sentido de humor mais ácido, mas perderá o último toque imperial.
O que se vai, definitivamente, é o conceito da monarquia como um anacronismo aceitável e até divertido.
O icónico chá no deserto.
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