1. Não tenho carro próprio. Nem mota. Nem carta de condução, de qualquer espécie. Nunca tive. Esta não é uma crónica sobre a greve que domina o país, e as notícias. Não sei se as bombas de gasolina da minha povoação (acho que são duas, mas não tenho a certeza) estão incluídas na lista das 374 em todo o país onde eu poderia abastecer, se fosse outra pessoa. Nem li o suficiente sobre a greve, as respostas, as contra-respostas para ter opinião sobre ela. Estou apenas a aproveitá-la para passar a minha mensagem pouco subliminar sobre esse outro assunto, improvável para muitos, eu sei: a vida não motorizada.

2. Nós, os apeados, os peões, sabemos o que é ser invisível. É o que somos para 99 por cento dos automóveis e motos, de acordo com a projecção universal que fiz a partir da minha povoação e arredores. Os arredores da minha povoação por acaso são bastante verdes, há uns séculos que é assim, mas cada vez mais é por acaso que ainda são verdes, porque os donos dela, os donos disto tudo, claro, são aqueles que vêem um peão, um apeado da vida, alguém como eu, e só não o atropelam por um triz. Ou seja, não o vêem. Não me vêem. Porque lá está, somos invisíveis. Nós, que ali vamos com as nossas pernas, os nossos pés, os nossos pulmões, colados ao fio do asfalto, porque não há berma, porque não há necessidade de bermas porque toda a gente sabe que não existem peões, está provado, e se existissem não andavam às claras, assim sem vergonha, nós, esses sem vergonha, dizia eu, esses desgraçados que só merecem é que lhes passe algum carro por cima, ali estamos, no mesmo plano da existência que aqueles troncos, aquelas folhas, aquelas florzinhas silvestres, tão pulverizadas por tubos de escape, ali estamos como todos estes seres vivos, plátanos lançando os braços sobre o asfalto em busca de espaço, de ar, de luz, pássaros em busca de uma pitada de água, todos em comunhão, oxigénio passando de uns para outros, e zás, quem te julgas tu, que já caíste, porque aí vem esse monte de ferro, essa arma de destruição maciça, aí vem mais um automóvel a rebentar com a barreira do som, e das emissões de CO2, para quem eu sou invisível, aliás, nem mereço existir.

3. Fiz outro estudo infalível. Cerca de 99,99 por cento das estradas nas redondezas da minha povoação não têm espaço para peões caminharem. Porque toda a gente sabe que os peões, se fossem visíveis, se tivessem o direito a andar de cabeça erguida, e não como um trapo, um saco para ali largado, iam dar mau nome a essa actividade nacional que é andar de carro só com uma pessoa dentro, como se não fôssemos morrer todos daqui a pouco se isto dos carros próprios, e das motos, não mudar.

4. Um dia gostava de conseguir partilhar a sensação que é irmos no meio da natureza e um assassino destes nos abalroar. Quer dizer, somos claramente de carne e osso, ossos daqueles que se esmigalham, carne daquela que fica em picadinho, coração que deixa de bater assim num nada. E vem alguém dentro de um tanque armado, artificialmente invulnerável, e acha que o peão, no mínimo, no caso de o ver, não devia estar ali. Porque estes peões são um atraso de vida! Uns egoístas! A caminhar na estrada, vejam lá! A estrada é para os carros!

Sério. Há gente tal que numa estrada sem berma grita ao peão que a estrada é para os carros. Em nenhum outro momento reflicto tanto sobre a questão filosófica do homicídio.

Um dia, ouvi um destes espécimes falar sobre ciclistas. Dizia ele que era um abuso os ciclistas na mais frequentada estrada das redondezas a atrapalhar a vida de quem trabalha, de quem produz, que até se fazia uma fila de carros atrás. Considerei pelo menos ir lá gritar na cara dele, como um capitão Haddock com perdigotos, se ele tinha a noção de que vamos todos morrer mas é por causa da sobreprodução, e dos carros engarrafados atrás das bicicletas, a começar pelo dele, com os meus votos de que, do dia para noite, enferruje. Ou qualquer coisa menos poluente. Mas achei que era desperdício de energia, má onda para a atmosfera, e a atmosfera, coitada.

Por essa e por outras, há séculos que não pego na minha bicicleta. Aqui nas redondezas, é uma actividade para colete à prova de balas, pelo menos toda a espécie de roupas luminosas e protecções. Continuo à espera de uma ciclovia que devia ter inaugurado há um ano, mas não começou sequer a ser construída.

5. Falava aquele espécime dos ciclistas egoístas, e não dos peões, por uma simples, singela razão que já adivinham: aquela estradinha tão frequentada não dá nem para um dos pés do peão. Eu gostava que os governantes nisto envolvidos tivessem uma avaria que os levasse a caminhar ali. É assim coisa de ser disparado para o buraco de ozono, directamente.

6. Já tenho 51 anos, portanto já há muitos que cada vez é mais improvável eu tirar carta, e que digo que não tenho intenção de tirar a carta. Só por motivo de força maior, que também os há. Mas ainda assim, desde que moro aqui, muita gente diz: é desta que tiras a carta. Cacete. Greta Thunberg, greve climática e tal, e as pessoas ainda acham que seria altura de uma apeada, que já conseguiu sobreviver 51 anos sem carro próprio, apesar de não haver manual de sobrevivência para isso num país como Portugal, essa apeada devia ir fazer agora aquilo que muitos de nós podiam deixar de fazer já, e que é andar de carro próprio, ou não partilhado?

7. Pronto, agora as motas. Vejo-os muitos, os das Harleys, aos bandos. São a banda larga do ruído. Mas chato mesmo é aquele solitário, que eu não sei o que que é que lhe faltou à nascença, ou mais tarde, a providência, que parte do corpo ele está a tentar compensar, começando pela cabeça, mas achou que era o caso de basicamente rebentar com todos os tímpanos dos seres que estiverem vivos às duas da manhã.

8. E não vamos falar das passadeiras, não é? Nas passadeiras é que os peões são uma verdadeira afronta à liberdade. Aí vem um bólide, no seu ritmo, rasgando o ar, vendo o sacana do peão a chegar à passadeira. Ou pára a bufar de contrariedade, ou finge que não vê, e o peão que pare.

9. Então isto é para acabar já com o carro próprio? E as crianças, os bebés, as aulas, a piscina, o balé, o violino? E as compras do supermercado? E os passeios ao fim de semana? E as madrugadas? As férias? Não, isto não é para acabar já com os carros próprios, ou só no sentido em que o ideal seria mesmo outra solução. Mas não é do que estou a falar agora, aqui. Do que estou a falar é 1) de melhores transportes públicos, incluindo durante a noite 2) de menos carros próprios, mais partilhados, com mais gente dentro 3) de repensar as estradas em zonas verdes, florestas, serras, orlas para peões também, e criar outras só para peões 4) de uma mega campanha de desmotorização individual.

Eu sei que a greve vos leva a arrancar cabelos, sejam automobilistas, governantes ou grevistas. Mas experimentem lá fazer umas andanças a pé e já voltamos a falar.