A propagação da violência em pequenas e grandes cidades e periferias de França no atual “momento George Floyd” que se vive no país é um alerta para o risco de contágio. A vingança pela morte do adolescente Nahel quando escapava à polícia foi um detonador. Mas o que a seguir se instalou é o vandalismo de gente com ódio à flor da pele e cuja principal motivação é destruir, causar dano. E pilhar, roubar.
Um terço dos mais de 2.000 delinquentes – quem pratica violência e roubo assim é pessoa criminosa - que a polícia apanhou e entregou à justiça, nestes cinco dias de desintegração da ordem, têm idades entre os 13 e os 18 anos. Peritos na análise ao que está a acontecer constatam que a proporção de menores entre as centenas de milhar de envolvidos nesta violência propagada é de cerca de um terço.
Foram mobilizados, para reposição da ordem, 45 mil homens e mulheres das forças de segurança. Mas os envolvidos nos bandos de violência são muitos mais e, na sua maioria, jovens com grande capacidade de mobilidade. Vale a pena repetir: mais de 30% são menores.
Vivem numa cultura de ecrãs de videojogos. A violência que estão a praticar é como um desafio que estão a superar, com recurso ao potencial que os ecrãs e a tecnologia digital lhes proporciona
É uma realidade que expõe as falhas do sistema educativo e das redes de acompanhamento social. Está também evidenciado que grande parte destes violentos de agora cresceu em rutura familiar. Muitos em famílias monoparentais. Vivem numa cultura de ecrãs de videojogos. A violência que estão a praticar é como um desafio que estão a superar, com recurso ao potencial que os ecrãs e a tecnologia digital lhes proporciona.
Um jogo de gato e do rato com os assaltantes em vantagem
Está a ser uma constante a atuação dos atacantes em grupos de cerca de 15, todos sempre com telemóvel na mão e ligados às redes sociais preferidas. Mostram altíssima mobilidade e tática de ataque: dois ou três grupos avançam por uma rua e atraem assim a atenção das forças de segurança; favorecem assim para o outro grupo quebrar os vidros de lojas na outra rua e aí pilharem tudo; a polícia, alertada, vai para a outra rua e, então, é desencadeado o assalto a lojas na rua de onde a polícia saiu. É um jogo de gato e do rato com os assaltantes em vantagem.
Só em Paris foram assaltadas lojas em 50 ruas e avenidas do centro. Os atacantes habitam bairros periféricos, mas avançam sobre o centro das cidades. Recorrendo a paralelos portugueses, é como se escolhessem a avenida da Liberdade em Lisboa ou a dos Aliados no Porto. Um dos alvos foi a enorme megastore da Nike, em Chatelêt, a escassos 200 metros do grande ponto de encontro que é o Centro Pompidou. Mesmo ao lado está a rua Rivoli, com algumas das mais requintadas lojas de vestuário em Paris. Também não escapou.
Por toda a França há centenas - estima-se que mais de 200 – super e hipermercados assaltados, vandalizados e pilhados. São 12 os centros comerciais vandalizados. Há um método recorrente: os assaltantes usam um veículo roubado para rebentar a entrada. Depois, avança a pilhagem. Em pelo menos um dos casos entraram num grande armazém de mobiliário, depois de colocarem um autocarro com acelerador ativado mas sem condutor para quebrar a entrada.
Os assaltos são filmados e as imagens partilhadas ao instante. Fica desencadeada uma espécie de competição: a ver quem rouba mais.
Há centenas de lojas de venda de computadores e telemóveis onde tudo foi roubado. O mesmo em lojas de roupa, algumas de marcas de luxo. As ourivesarias também estão no mapa das pilhagens. Grande e pequeno comércio.
Os assaltos são filmados e as imagens partilhadas ao instante. Fica desencadeada uma espécie de competição: a ver quem rouba mais.
Para além do ataque para roubar também está abundante o assalto para vandalizar. Quase tudo o que simboliza a autoridade do Estado é um alvo.
“Ne touche pas!”
É marcante a imagem da revolta de uma mãe, uma mulher celibatária de 42 anos, que às 2 da manhã avança sozinha sobre um grupo de uns 15 rapazes que começam a assaltar uma creche. A mulher grita-lhes: “ne touche pas!”. Repete: não toquem na creche. Naquela madrugada desta sexta-feira ninguém dormia naquela rua que tinha a violência à solta. A coragem daquela mãe levou a que uma vintena de moradores saísse e se juntasse a ela. Os assaltantes fugiram.
Ao fim da tarde de sábado, 1 de julho, estavam identificados 266 edifícios públicos incendiados. Entre eles 26 mairies (câmaras municipais), 24 escolas, 106 esquadras ou postos das diferentes polícias. Também 27 mercados municipais. Foram verificados 3.279 veículos incendiados até às 6 da tarde deste sábado. Também, pelo menos, 728 casas particulares (residências ou lojas ) incendiadas.
As forças da polícias estão confrontadas com uma arma pirotécnica que lhes está a causar dificuldades e tem forçado recuos: os agressores estão fornecidos com abundantes morteiros de fogo de artifício que disparam contra a polícia a pé quando esta se aproxima.
Na origem de tudo a morte de Nahel, 17 anos, pouco antes das 8:19 manhã de terça-feira.
Às 7:55, o carro conduzido por Nahel foi mandado parar por uma patrulha da polícia numa rotunda de Nanterre, na periferia de Paris. Nahel, que não tem carta de condução, não parou. Hábil a conduzir conseguiu escapar por várias ruas, apesar de perseguido pela patrulha em automóvel que alertou a polícia motorizada na zona. Esteve quase a ser apanhado num semáforo vermelho, mas voltou a conseguir fugir. Adiante, um engarrafamento, permitiu aos polícias apanharem o carro em que seguia Nahel e mais dois rapazes. Estes, ao verem a polícia ao lado do carro, abriram a porta e escaparam. Nahel, ao volante, voltou a tentar fugir. Um dos polícias disparou e matou-o. O carro imobilizou-se numa floreira.
O polícia alega que disparou para evitar que aquele condutor na fuga causasse vítimas. O polícia que disparou está detido. O procurador que investiga o caso entende que não havia razão para disparar a matar.
A interceção final e o disparo mortal foram filmados pelo telemóvel de alguém que estava ali e que publicou o vídeo. A revolta começou a tomar a rua escassas duas horas depois e não parou de crescer.
Nahel vivia com a mãe num dos quarteirões onde, na periferia parisiense que é Nanterre, abundam a pobreza e a exclusão social. São quarteirões onde os mais jovens se agrupam em comunidades fechadas a quem não é como eles. Não vão à escola e nada acontece. Há um número infinito de quarteirões e bairros assim nas periferias de cidades francesas. Estas periferias são campo social armadilhado.
A polícia não entra em muitos destes bairros. Mas é implacável quando apanha qualquer desses jovens em delito fora do terreno deles. Mais de 70% dos detidos nas cadeias de Marselha são pessoas com menos de 30 anos e origem familiar no Magrebe. Muitos estão condenados por pequenos furtos.
A extrema-direita, encabeçada por Marine le Pen, cada vez mais em alta nas sondagens, denuncia uma guerra de civilizações.
Estas “banlieues” são zonas de crise, mesmo de desastre, com relações sociais muito deterioradas.
Ao centro e à esquerda é apontado o falhanço das políticas urbanas e de habitação em torres residenciais rapidamente degradadas que geram cada vez mais “ghettos” de excluídos.
Os jovens destes bairros sentem-se injustiçados, humilhados e hostilizados. Cruzam-se racismo e violência. Muita revolta. Nenhum esforço de integração social. A polícia, distante, em divórcio total, aparece como inimiga principal nesses bairros. Todo o sistema do Estado passou a ser considerado hostil. Estas “banlieues” são zonas de crise, mesmo de desastre, com relações sociais muito deterioradas.
O Estado francês há muitos anos que se mostra débil e incapaz de encontrar respostas para este mal nas periferias. São zonas de segregação social e de discriminação. Está instalada a cultura de repressão, falta a imprescindível, obviamente muito complexa, cultura de integração que a realidade impõe. É a condição para evitar guerrilhas em escalada.
Entre a ordem e a justiça
É assim que a tragédia de um polícia com disparo fácil a matar desencadeou este incêndio social. E a natural sensação de insegurança – também de indignação – entre a maioria da população que exige ao Estado que garanta a boa ordem. Fica instalado terreno fértil para Le Pen, Zémmour e outras extremas políticas com discurso identitário e securitário
Este fogo há-de ser controlado. Mas o potencial para novas espirais de violência permanece. Os tumultos destes últimos dias também mostram que há profissionais da agitação a explorar a fúria dos jovens.
O trabalho da polícia é muito árduo. Mas parece evidente que a polícia francesa não está formada com competências que favoreçam intervenções inclusivas em vez de ampliar a hostilidade.
Está a ser questionado o posicionamento habitual da polícia francesa: há quem defenda que deveria substituir a recorrente imagem ostensiva de demonstração de força pela de polícia de proximidade ao serviço dos cidadãos.
A lei em vigor abre a via para o disparo fácil por parte da polícia – e há muita gente a concordar que assim seja.
En quanto tudo isto acontece, o terreno social em França continua fértil para novos incêndios.
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