As capitais e grandes cidades do século XXI são o resultado de muitos factores sociais e económicos conhecidos, mas todas começaram, séculos e milénios atrás, como centros de confluência comercial. Porque o tráfego marítimo era mais fácil, muitas são à beira de rios ou mares: Londres, Nova Iorque, Instambul, Oslo, Rio de Janeiro e muitas outras. Também há as interiores, é verdade, como Paris, Pequim, Viena, Kiev e São Paulo. E as escolhidas administrativamente, Washington e Brasília. Segundo as Nações Unidas, há actualmente 33 megacidades, com mais de 10 milhões de habitantes. (Em 1950 havia apenas uma, Nova Iorque.)

Com o aquecimento global, um fenómeno indiscutível (embora haja quem o não queira ver), estas grandes concentrações humanas costeiras têm de enfrentar um novo desafio, a subida do nível do mar. Já há previsões para uma elevação geral das águas em cerca de 1,5 metros em 2100. Está bem, em 2100 nenhum de nós estará vivo, porquê preocupar-nos? Contudo, de hoje a 2040, uma data em que muitos de nós esperam estar vivos, a subida será de 9,3 centímetros. Não parece muito, mas é o suficiente, considerando as marés, para a “baixa” de muitas cidades se tornar perigosa e/ou inabitável.

Jacarta é um cenário catastrófico especial (mas não único): situada ao nível do mar, tem uma grande parte da população a viver na água, em palafitas ou em barcos. Desde a independência da Indonésia, em 1945, a cidade passou de um milhão para 30 milhões de habitantes - três vezes a população de Portugal concentrada num espaço de 700 Km2. É a segunda do mundo em concentração habitacional. A primeira é Tóquio, mas as diferenças não podiam ser maiores; enquanto Tóquio pertence a um país rico, com uma população altamente civilizada e alto nível de vida, em Jacarta as diferenças sociais e habitacionais são extremas. Uma pequena elite vive em habitações normais, enquanto a maioria não tem água, nem electricidade, nem as condições de habitação que consideramos mínimas. (A percentagem de pobres na Indonésia é de 60%. O grau de poluição é brutal, o trânsito impraticável, e os residentes nas áreas aquáticas - 40%  da cidade - consomem a água onde defecam. As águas profundas dos terrenos originalmente pantanosos foram escoadas, facilitando a penetração das correntes marítimas. 

Joko Widodo, é Presidente da Indonésia há oito anos, um carpinteiro nascido nos bairros da lata que fez carreira na indústria da madeira até se tornar rico e se interessar por política. A sua base vem do contacto permanente com a população mais desfavorecida; costuma passear pelos bairros mais pobres e falar com toda a gente sobre os seus problemas. Será um populista, mas um “bom populista”, se a contradição é possível.

Joko, que antes de Presidente foi edil do município de Jacarta, durante muitos anos dedicou-se a melhorar a vida na cidade, construindo barreiras para a água do mar e melhorando os transportes públicos. Pensou em construir ilhas artificiais, mas finalmente chegou à conclusão de que não há nada a fazer. E anunciou uma solução radical: construir outra capital, com toda a estrutura e qualidade de vida que jamais será possível criar em Jacarta, além de estar ao abrigo da destruição provocada pela subida das águas do mar. 

Os sucessores de Joko na câmara tentaram subir as barreiras e outras manobras de contenção, mas todos reconhecem que é uma tarefa impossível; a cidade está a afundar-se na sua própria poluição. A sobrepopulação é intensa: mais de 10 milhões na área central de 800 km2, 20 milhões nas periferias. A desflorestação é completa: numa região tropical, a cidade não tem parques! Os pobres empilham-se em construções improvisadas sobre a água imunda, ao lado de quarteirões de habitação de luxo. A cidade tresanda. 

Jacarta fica em Java, uma faixa de terra muito estreita, uma das 17.000 ilhas que constituem a Indonésia. Joko quer construir a nova capital na ilha de Bornéu, que tem uma massa terrestre muito maior, 743 km2, uma elevação máxima de quatro mil metros, é densamente arborizada e está esparsamente povoada. E já escolheu o nome: Nusantara, o que quer dizer “arquipélago” em javanês antigo.

eA Indonésia é composta por centenas de etnias, cada uma com o seu dialecto. Algumas regiões são muçulmanas e seguem a lei da Sharia, outras, minoritárias, são cristãs, e outras ainda seguem várias religiões exóticas. Mas a Indonésia consegue ser uma democracia secular, que se tem conseguido manter mais-ou-menos, no meio de muita corrupção, clientelismo e disparidade social. Uma nova capital seria uma maneira de unir toda essa disparidade.

Mas o projecto não é fácil de executar. Há os problemas das clientelas e das diferentes opções ideológicas dos seus opositores. Até agora, do plano magnífico de uma cidade eficiente, confortável e ecológica, nada foi construído.

Uma outra questão, evidentemente, é que não será possível “exportar” os habitantes de Jacarta para Nusantara. Nem eles querem, nem é social e economicamente viável.  Será talvez um cenário semelhante a Brasília, fundada em 1960,  os primeiros a instalar-se na nova capital serão os políticos, os funcionários públicos e os executivos das grandes empresas nacionais. E poderá acontecer precisamente como em Brasília: os subalternos dessas castas e os pobres irão cair em cidades satélites sem urbanização nem planeamento, deslocando-se para o centro em péssimos transportes.

Este projecto faz lembrar outro igualmente grandioso: Neon, a cidade futurista que a Arábia Saudita está a construir na costa do Mar Vermelho. Há algumas semelhanças, como a ideia de uma urbe ecológica, luxuosa e esteticamente perfeita. E as mesmas questões, como o trabalho escravo empregue na construção, que não terá acesso ao que constrói, e quem quererá viver numa estrutura urbana excessivamente planeada, sem margem para o imprevisto que torna as cidades tão interessantes. 

A diferença maior é, evidentemente, que Neon é um projecto do incontornável Mohammed bin Salman, com dinheiro para comprar tudo, desde campeonatos de todos os desportos a fóruns internacionais (de ecologia, inclusive!), enquanto Nusantara ainda não tem o financiamento à vista. 

Enquanto os homens visionam, as águas sobem...

Mas, se não pudéssemos sonhar, o que seria de nós?