Quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018. Um dia antes da inauguração dos Jogos Olímpicos de Inverno “da Amizade”, em PyeongChang,  Kim Jong-un presidiu à tradicional mega-parada militar que todos os anos celebra o Dia do Sol, data de nascimento de Kim Il Sung, fundador da monarquia comunista. Pode dizer-se que é mega porque não são só os militares que desfilam em impecável sintonia; os espectadores civis também obedecem a uma coreografia de Ordem Unida (Ordem Unida é o termo técnico para o treino das marchas. Numa parada “normal” a população observa e aplaude à vontade, desordenadamente). Os observadores notaram o aumento de mísseis balísticos intercontinentais, de dois, no ano passado, para sete, este ano. Contudo a parada foi ligeiramente menor que anteriormente (porquê, nunca se saberá), embora a multidão se tenha mostrado diligentemente feliz e entusiástica, como é de praxe.

Ao longo da História as paradas militares sempre tiveram duas funções, não necessariamente concomitantes: celebrar uma vitória ou glorificar um líder. A partir do século XX, e por razões que seria longo esmiuçar, as paradas militares adquiriram uma conotação quase negativa em populações cada vez mais cansadas de guerras e favoráveis a estados controlados por civis. Tornaram-se, com poucas excepções, simbólicas de estados totalitários e militarizados.

As mais famosas paradas de celebração eram apanágio da União Soviética. Celebravam-se na Praça Vermelha, uma a 9 de Maio para comemorar a derrota dos nazis, “Dia da Vitória”, e outra a 7 de Novembro para relembrar a Revolução de Outubro de 1917. A última ocorreu em 1990. Yeltsin ainda mandou fazer um “Dia da Vitória”, em 1995, mas fora da Praça e sem o aparato habitual.

Desde que Putin subiu ao poder, voltou a exibição de aparato militar. E de ano para ano aumentou a sua magnitude: cinco mil soldados em 2003, 14 mil em 2012. Em 2008 apareceram novamente tanques e mísseis. A partir de 2010 as paradas passaram a ser sobrevoadas por formações de caças.

Por exemplo, no Dia da Vitória do ano passado apareceram veículos blindados e soldados com camuflagem de neve, um sinal das ambições russas no Árctico. Será também o caso do maior número de mísseis intercontinentais em Pyongyang.

Além da demonstração de força, as paradas também servem para enviar recados aos rivais, que analisam minuciosamente cada unidade e equipamento em desfile. Por exemplo, no Dia da Vitória do ano passado apareceram veículos blindados e soldados com camuflagem de neve, um sinal das ambições russas no Árctico. Será também o caso do maior número de mísseis intercontinentais em Pyongyang.

É de notar que a Roménia, vice-campeã incontestável desta coreografia de massas, não fazia paradas militares; eram desfiles com civis a cantar e a dançar, em grupos coordenados com mesmas cores (como no Carnaval do Rio), em que a assistência também era ensaiada. Conta-se que quando Ceaucescu visitou a Coreia do Norte, em 1978, ficou tão impressionado com a beleza majestática da organização estatal que decidiu fazer o mesmo na Roménia.

A China também sempre teve paradas, nomeadamente para celebrar a data simbólica da criação do Exército de Libertação do Povo. Em 2017, o Presidente Xin Chin Ping, com a sua política recém celebrada como novo paradigma na Constituição, participou do desfile, uniformizado. Outro recado, o de que a China, tão empenhada no comércio mundial, não descura o seu poder militar.

Nas democracias também se fazem paradas, não obviamente para celebrar líderes, mas para comemorar vitórias. A mais famosa e menos mal vista é a Celebração da Tomada da Bastilha, a 14 de Julho de 1789. Na verdade só começou em 1880, para fazer renascer o orgulho nacional depois da derrota de 1870 na Guerra Franco-Prussiana. Mas, a certa altura, os franceses começaram a convidar amigos e aliados para desfilar, e dirigentes doutros países a assistir, como foi o caso de 2017, em que participaram os membros da UE, dando assim um sentido mais celebratório de Liberté, Equalité, Fraternité do que um cunho nacionalista. (Em 2016, o nosso Presidente Marcelo Rebelo de Sousa esteve presente.)

E, tal como Ceaucescu se impressionou com a coreografia de Kim Il-sung, também Trump se surpeeendeu com a parada do 14 de Julho, onde esteve presente a convite de Macron. Apesar do ar sisudo com que assistiu ao desfile - e que foi documentado pela imprensa - o momento ter-lhe-á causado impacto ao ponto de ter dito ao Presidente de França que estava a pensar em ordenar no 4 de Julho, o Dia Nacional dos EUA, “um grande espectáculo de força militar.”

Jim Mattis, Ministro da Defesa, diz que a ideia de Trump é apenas uma mostra do respeito que ele tem pelos militares. Mas há militares, como Robert O’Neill, um dos Seals que abateu Bin Laden, que se opõem completamente a qualquer manifestação deste tipo

Nos Estados Unidos, as paradas militares têm sido tradicionalmente usadas para celebrar o fim de conflitos, tal como aconteceu no final da Guerra Civil e das duas guerras mundiais. Também ocorreram na tomada de posse ( termo de aceitação, “Inauguration”) de Eisenhower, um general de cinco estrelas, e de John F. Kennedy, que serviu na Marinha na II Guerra Mundial. Kennedy até mandou incluir uma arma nuclear na parada, para mandar recado aos soviéticos.

A última parada em Washington foi em 1991, para comemorar o fim da I Guerra do Golfo, com soldados de todos os países presentes no conflito e George Bush, pai, na tribuna.

Bush também foi militar, piloto da marinha. Não é, como se sabe, o caso de Trump, que foi até acusado de  “fugir à tropa” por ter conseguido ser excluído da incorporação obrigatória com um atestado médico questionável; tem por isso um esporão no calcanhar. Mas Trump gosta dos militares – está sempre a falar nos “meus generais” (McMaster, Kelly e Mattis), e os militares gostam dele; uma sondagem durante a campanha presidencial mostrou que 60% eram a seu favor e 34% por Clinton.

Aliás, para um país que é o mais poderoso do mundo em termos de armamento e tem o terceiro maior contingente profissional, 1.350.000 homens (os maiores são a China e a Índia), a presença militar na sociedade civil é muito discreta. Nunca se vêem comboios de veículos nas estradas, as bases e quartéis são em lugares remotos ou discretos, e mesmo nas ruas e transportes públicos são poucas as fardas. Uma lei de 1878, chamada de “posse comitatus”, proíbe expressamente o executivo de usar as forças armadas para resolver situações civis. Pode dizer-se que os americanos gostam dos militares, mas querem tê-los longe.

Até que o Presidente Trump, num dos seus repentes, decide que quer uma grande parada militar em Washington – por nenhuma razão declarada, o que levou imediatamente a especulações das mais maliciosas, desde a de que quer celebrar-se a si próprio, como a de que gostaria de mostrar mais uma vez a Kim Jong-un que tem um botão vermelho maior. É que não há, nesta altura, nenhuma vitória específica a celebrar.

O Pentágono sugeriu que poderia ser no Dia dos Veteranos, 11 de Novembro, comemorativo da vitória na I Guerra Mundial. Também há a ideia de escolher o 28 de Maio, o Dia da Memória, que honra os americanos mortos em todas as guerras. Outra sugestão é o Dia da Independência, 4 de Julho, o que seria mais próximo do simbolismo do 14 de Julho francês.

Jim Mattis, Ministro da Defesa, diz que a ideia de Trump é apenas uma mostra do respeito que ele tem pelos militares. Mas há militares, como Robert O’Neill, um dos Seals que abateu Bin Laden, que se opõem completamente a qualquer manifestação deste tipo.

Os próprios republicanos não parecem muito entusiasmados. O congressista David Perdue, aliado de Trump, disse que preferia que nada se fizesse. E o congressista democrata Adam Smith, o principal representante  do partido na Comissão das Forças Armadas, afirmou: “Uma parada militar assim, indevidamente focada numa única pessoa, é o que fazem os regimes autoritários, não as democracias.”

Talvez seja altura de recordar que, no Império Romano, quando um general era aclamado numa grande parada de vitória, seguia numa quadriga com um escravo atrás dele a segurar a coroa de louros sobre a sua cabeça. E o escravo repetia-lhe em voz baixa: “Lembra-te que és mortal”. Trump não quererá esse formato na sua parada, com certeza.

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