Nesta época em que quem está a impor-se é quem sabe captar e canalizar os ódios, dá gosto ver manifestações que também são uma festa, são protesto, sim, mas com alegria. É desafiante analisarmos as imagens e os discursos de duas opostas manifestações destes últimos dias, ambas com Trump no epicentro.
Na sexta-feira, juntaram-se os entusiasmados com Trump, centenas de milhar na enorme esplanada do Capitólio, em Washington. Aquele povo, nas muitas entrevistas, assumiu-se como um conglomerado de tantas frustrações de anos sucessivos de perda de rendimento, emprego e esperança. É o povo que acredita no discurso de Trump e que tem esperança de que ele consiga cumprir a promessa de fazer a América grande para eles, o povo.
No sábado, foi a vez do que começou por ser a manifestação das pussyhats, assim autodefinidas em resposta visual a uma grosseria de Trump, em 2005, quando disse, como está documentado num vídeo, que gostava de “agarrar as mulheres pela pussy” (pussy, a significar vagina). Daí resultou agora um movimento de afirmação feminista e progressista, simbolizado por um gorro cor de rosa tricotado com dois altinhos que dão a ideia de orelhas de gato. São gorros que também lembram os usados pelas revolucionárias francesas de 1789. Agora, nos EUA, o movimento feminista com um programa político com amplo leque de reivindicações progressistas e oposição frontal a Trump.
As pussyhats apresentam-se herdeiras de movimentos de muitas causas da história americana: sufragistas, abolicionistas, pelos direitos civis. Também feministas, também pelos direitos dos povos indígenas e até vestígios do movimento Occupy Wall Street. Muita motivação nas diferenças entre mulheres brancas e as de outra cor, as disparidades económicas entre raças e sexos, também nas liberdades de escolha, do aborto ao género, até a liberdade e independência para a Palestina. Com, em fundo, o direito ao trabalho e à cidadania legal. Convocaram uma marcha para o sábado, dia seguinte ao da posse de Trump. Escolheram Washington como lugar para a marcha principal, com réplicas em várias outras cidades. Previram a participação de 200 mil a 300 mil mulheres nessa marcha pela liberdade e contra o trump-machismo. Estima-se que desfilou, no conjunto das 600 manifestações com a mesma motivação, mais de um milhão de pessoas, mulheres, mas também homens, crianças, e nem faltaram os animais de estimação.
Estão na lenda as grandes marchas na América, como a de Selma em 1965 ou as pacifistas contra a guerra do Vietname, nos anos 60 e 70. Uma outra, em 2004, contra a política de George W. Bush. Esta marcha de 21 de janeiro de 2017, mesmo que não seja a maior, não sei, fica certamente para a memória. Tem aspetos épicos e funcionou, com irreverência feminina, como uma gigantesca sessão de terapia de grupo para os opositores a Trump, no dia seguinte ao da posse do presidente. O que estimula constatar nesta manifestação pussyhat é a alegria multicultural que se sentiu em todos os desfiles. Foram uma festa democrática. A demonstrar como uma manifestação de protesto não tem de ser uma coisa lúgubre, a destilar ódios.
As estrelas do espetáculo colocaram-se na primeira linha das pussy, exploraram a sua celebridade. É um facto que houve discursos cheios de fúria, como o de Ashley Judd que respondeu com alma e vigor ao “nasty woman” que Trump atirou sobre Hillary na campanha. Mas também houve o falar claro de Scarlett Johansson dirigido a Trump: “Não votei em si, hoje aceito-o como presidente, mas tenho medo pelo que vai ser o futuro de mulheres como a minha mãe ou a minha irmã, e as tantas outras que estão em vias de ficar sem assistência médica e não se sabe o quê mais. É por isso que temos de ficar vigilantes e ativas na comunidade”.
Estudos sobre o voto nas presidenciais mostram que 42% das mulheres dos EUA votou por Trump. Entre as mulheres brancas, a percentagem de voto em Trump foi de 53%.
As manifestações de sábado nos EUA juntaram sobretudo gente da América das grandes cidades. Na véspera, para celebrar Trump, era mais a gente do interior da América, que viajou a Washington com grande esperança no novo presidente.
Resulta uma evidência: há uma divisão profunda dentro dos EUA. Vai ser preciso que alguém explore a possibilidade de fazer pontes. E há que pensar em como tratar a questão na Europa, onde a mensagem de Trump está a aliciar bastante gente e a impulsionar políticos ultra cuja marca identitária é a liquidação da União Europeia e o que esta representa como esperança (tão debilitada, infelizmente) de convivência com tolerância, em liberdade e respeito.
Também por estes dias:
Theresa May, a chefe do governo de Londres, anda embalada pela parceria com Trump. Agora, o Supremo Tribunal britânico acaba de transferir para os deputados a última palavra sobre o Brexit.
A esquerda francesa está estilhaçada, sem liderança, sem esperança. Há cinco anos, Hollande triunfou (catapultado pela rejeição de Sarkozy) e impulsionou a maioria absoluta dos socialistas. Passados cinco anos, a frustração é geral, os socialistas franceses não enxergam um amanhã de esperança e a eleição presidencial, daqui a três meses, vai ser decidida à direita, entre um liberal clássico (Fillon) e uma ultra (Le Pen). Vai ser o assalto da antipolítica? O PSF vai resistir?
A intenção de Trump de levar a embaixada dos EUA de Telavive para Jerusalém tende a inflamar o que é altamente inflamável.
Os veteranos estão de volta no topo do ténis mundial: Federer (35 anos), Nadal (30), Venus Williams (36), comandam a abertura da temporada na Austrália.
Holywood escolheu dançar nos Óscares ao ritmo de La La Land. Vamos para a festa.
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