Uma rapariga tira umas fotografias nua e em poses sensuais - as famosas nudes - e envia-as ao namorado numa troca de mensagens de teor sexual - o igualmente famoso, sexting. Iniciaram uma relação há pouco tempo e durante este confinamento têm partilhado alguns conteúdos do género, de forma a colmatarem a distância e a divertirem-se um pouco juntos. Entretanto, têm um desentendimento, terminam a relação e ele, no auge da sua raiva e descontrolo, partilha as fotografias em alguns grupos de WhatsApp. As pessoas desses grupos, por sua vez, partilham também “só com mais um grupo ou dois”. As desses grupos fazem o mesmo, e, de repente, um conteúdo partilhado num contexto de intimidade e confiança com uma pessoa cai no mundo e fica acessível a qualquer um. E a qualquer um significa também à família da vítima, colegas de faculdade ou trabalho, vizinhos do bairro, pessoas que a conhecem ou até que não conhecem e passarão a reconhecer por estes conteúdos.

Esta é, infelizmente, uma história cada vez mais frequente e que todas e todos, de alguma forma, já presenciámos ou de que ouvimos falar ou fizemos parte.

Numa era da tecnologia como a que vivemos, em que o telemóvel se tornou num terceiro braço e em que tanto da nossa vida já passou para o digital, as relações e os abusos que muitas vezes as acompanham não são uma excepção. Mais ainda num período de confinamento (e para muitas/os, de isolamento), em que as redes sociais têm funcionado como um encurtador de distâncias.

Neste contexto, tem-se tornado cada vez mais comum a divulgação não consentida de fotografias e/ou vídeos de carácter sexual, commumente conhecidas como revenge porn ["porno de vingança"] ou nonconsensual pornography ["pornografia não consensual"]. Estas imagens são geralmente recolhidas de forma consensual, numa relação ou interacção afectivo-sexual, mas sem o intuito, pelo menos de quem envia, de divulgação posterior fora deste contexto privado.

Segundo um estudo realizado pela Cyber Civil Rights Initiative, 90% das vítimas são mulheres, sendo os agressores geralmente homens e ex-parceiros românticos que, tal como na história com que começámos, utilizam estes conteúdos após o término da relação como forma de humilhação ou retaliação.

As consequências para estas mulheres? Nefastas a todos os níveis: vida pessoal, profissional, saúde física e mental. É um mergulho profundo e de cabeça num mar de culpa, vergonha, medo, tristeza, ansiedade. A vítima entra num processo de fuga constante, isolando-se em casa ou mudando permanentemente de trabalho, de cidade, às vezes de país, mas sempre perseguida pelo fantasma de “quando é que também estas pessoas vão descobrir?”. É uma experiência traumática, com marcas por vezes para a vida toda e que, sem suporte afectivo e psicológico, poderá resultar em estados depressivos graves, comportamentos auto-lesivos e mesmo suicídio.

São estas as repercussões relatadas não só pelos estudos realizados na área, mas também pelos profissionais que trabalham com estes casos, e pelas próprias vítimas, como pude inclusive observar através das dezenas de histórias aterradoras que recebi, após abrir um questionário sobre este tema no meu Instagram.

Não obstante todo o contexto acima descrito, que estará a “facilitar” o aumento desta forma de violência sexual, creio que vale a pena reflectirmos mais profundamente sobre todos os factores aqui envolvidos e também sobre o nosso papel no problema. Sim, porque reduzirmos este crime à suposta maldade do agressor é desresponsabilizarmo-nos de uma questão de que todas/os fazemos, de alguma forma, parte.

Observo o rapaz da nossa história inicial e vejo nele um reflexo de várias falhas sociais e educacionais. Convido-vos a visitá-las e a analisá-las comigo:

- Falha ao nível de uma educação sexual sólida e abrangente que, muito mais do que ensinar sobre como colocar preservativos e ter cuidado com as DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis), ensine sobre respeito, sobre consentimento, sobre igualdade, sobre inclusão, sobre intimidade, limites, confiança, partilha. Sobre como nos relacionarmos de forma saudável connosco e com os outros.

- Neste seguimento, falha também no que toca à educação para o desenvolvimento de um inteligência emocional que englobe, por um lado, a empatia pelo outro — isto é, a capacidade de nos colocarmos no seu lugar, anteciparmos e percebermos o impacto daquilo que vamos fazer na vida e bem-estar do outro. Mas também um autoconhecimento e auto-regulação emocional, de forma a identificar e compreender emoções como a raiva, o medo, a frustração, ganhando ferramentas para lidar com as mesmas e gerir os impulsos de uma forma saudável. Mas, se esta lacuna é notória de uma forma geral, o que se dirá no caso dos homens. O que nos leva ao terceiro ponto.

- Vivemos ainda numa sociedade machista, patriarcal, em que “homem não chora”, “homem é macho alpha”, “homem está sempre pronto para sexo e para abordar umas ninas jeitosas que passem na rua, porque, lá está, tem de provar à alcateia que é tão ou mais alpha do que os outros”. Os meninos e rapazes não são estimulados a identificar ou compreender as suas emoções. Pelo contrário, é-lhes dito que senti-las e demonstrá-las fará deles “menos homens”. Da mesma forma, é ensinada e legitimada, nas entrelinhas, uma posse sobre o espaço e o corpo feminino que se traduz em abusos a vários níveis. E exemplos não nos faltam: piropos, apalpões, assédio, dick pics aleatórias que ninguém pediu, objectificação e sexualização do corpo feminino, e, lá está, a própria divulgação de conteúdo sexual sem consentimento.

Nesta mesma sociedade patriarcal, ensina-se às mulheres precisamente o contrário. Que deverão resguardar-se, que “os homens são mesmo assim”, que têm de ter cuidado. Aos homens é ensinada liberdade, às mulheres é ensinado recato.

E tudo isto torna-se absolutamente gritante quando, ao ser divulgado este tipo de conteúdos, é a vítima a socialmente enxovalhada, e não o agressor. “Puta", "porca", "pôs-se a jeito", "quem é que lhe manda enviar essas coisas?", "ela que feche mas é as pernas!", "devia ter vergonha!".

E pergunto eu, que nem sou de intrigas, vergonha de quê? Vejamos, aquilo que está exposto nas fotografias ou vídeos divulgados não é nada que não exista efectivamente fora deles. Um corpo nu existe, práticas sexuais existem. O erro aqui foi serem divulgadas sem consentimento! Mas, se acontece na vida real, por que razão ficamos tão ofendidas/os e chocadas/os ao vê-lo?

O que ofende é a mulher como ser sexual, é a sua liberdade, é o ser vista numa posição de posse e vivência do seu corpo e do seu prazer. É essa liberdade que assusta, que ofende, que enfurece tantos e tantas. Homens e mulheres. A mulher presente nas nudes não é só vítima do agressor, é vítima de toda a sociedade machista em que se insere.

“Ok, boa, Tânia, já percebi. Mas, então, o que podemos fazer para mudar isto?”

Várias coisas, olhem que bom!

- Educar, reflectir, debater. Trazer o tema para cima da mesa, falar sobre ele, estimular o pensamento crítico e a empatia. E, sim, talvez não sejamos todas/os professoras/es com acesso a turmas de crianças ainda livres de todo o condicionamento social, tal qual esponjinhas sedentas de conhecimento. Mas somos cidadãs e cidadãos com família, com amigas/os, com vizinhas/os, estamos inseridas/os em grupos que podemos sensibilizar e influenciar positivamente. Trazer a tão simples - mas tão importante - questão: “E se fosse comigo? E se fosse contigo?”.

- E por falar em grupos! Estão a ver aqueles grupos de WhatsApp ou Telegram de que fazemos parte ou onde estão pessoas que conhecemos onde são trocadas centenas de fotografias e vídeos com mulheres em situações de cariz sexual? Pois bem, a nossa função aqui é cortar a corrente, sensibilizar para as consequências que aqueles nossos cinco minutos de risota e mais 10 segundos a partilhar terão na vida da pessoa presente naqueles conteúdos. Se corres o risco de ser a/o aborrecida/o, má onda do grupo? Corres. Mas, então, talvez não estejas nos grupos certos.

- Assinar a petição “Pornografia partilhada de forma não consentida: Crime público”, presente no site da Assembleia da República. Recentemente, juntei-me à deputada e advogada Cristina Rodrigues e aos movimentos @naopartilhes e @cortaacorrente, para a elaboração de um Projecto de Lei que tem como objectivo tornar a partilha não consentida de conteúdo sexual um crime público, autónomo no código penal, o que, ao contrário do que se passa em países como Filipinas, Reino Unido, Canadá, Malta, Israel e Estados Unidos da América, ainda não existe em Portugal. Pretende-se, assim, prestar um maior apoio e protecção às vítimas, sensibilizar e prevenir o problema. Neste sentido, temos produzido ao longo das últimas semanas diversos conteúdos no Instagram sobre a temática, de modo, também, a angariar as assinaturas para a proposta ser analisada em Assembleia de República. A adesão foi tanta que o site crashou por diversas vezes, o que nos deixou muito felizes! Rapidamente conseguimos o número mínimo de assinaturas, mas podem continuar a assinar, porque quantas mais houver maior peso terá a petição e a proposta enquanto representação do interesse das portuguesas e portugueses.

- Por último, mas não menos importante: pede ajuda! Se estiveres a passar por isto ou se conheceres alguma vítima. O medo, a vergonha e a culpa levam muitas vezes a que as vítimas se escondam e se afundem no sofrimento. Procurem ajuda de alguém da vossa confiança, falem com as pessoas dos movimentos @naopartilhes e @cortaacorrente, contactem serviços de apoio à vítima que vos possam prestar apoio psicológico. Sei que pode parecer que estão sozinhas, mas não estão e existem pessoas qualificadas e de braços abertos para vos receber.

E muitas pessoas poderão estar a questionar-se: “Então, mas a solução não seria simplesmente não enviar as nudes? Não mandem e está resolvido!”. Não, e perdoem-me as/os mais cépticas/os pela grande utopia que vos trago de seguida, mas não é assim que se resolve. Sim, claro que, numa perspectiva a curto prazo, existem cuidados que devem ser tidos: haver confiança na pessoa com quem estamos a fazer estas partilhas e fazer as fotografias ou vídeos de forma a que não sejamos directamente identificadas (por exemplo: não aparecer cara, tatuagens, etc.).

Mas a solução efectiva e a longo prazo para problemas decorrentes de uma sociedade machista e opressiva nunca será continuar a limitar a liberdade do oprimido. Isso apenas alimenta e perpetua o problema! A solução para não ser assediada na rua não é não usar um decote. A solução para não ser violada numa noite de copos não é nunca mais beber. A solução para nunca vir a ter nudes ou vídeos meus espalhados na internet não é nunca mais vir a poder partilhá-los com absolutamente ninguém.

A solução para este tipo de problemas nunca será continuar a limitar a liberdade da vítima, e sim termos leis que limitem a liberdade dos agressores, e que, desta forma, previnam também o crime. Para além de, claro, continuar a trabalhar no sentido de uma educação inclusiva e para a igualdade de género, da qual todas e todos iremos beneficiar.

Até porque, convenhamos, a nude pode ser uma excelente forma de estimular a nossa intimidade e explorar a nossa sexualidade, ainda mais no momento de confinamento que vivemos. Por isso, prendam os agressores e libertem a nude!

(a autora escreve com o antigo Acordo Ortográfico)