Cai a noite na aldeia. Estamos em 1842 e as pequenas ruelas estão desertas, pouco iluminadas e não se ouve nada a não ser os ruídos da natureza que teima em não dormir. De repente, um grito: “Agarra que é pedófilo!”, diz uma senhora, em vestes de dormir, que irrompe esbaforida pela porta de casa. Um vulto corre como quem tenta fugir. A população acorda e sai toda à rua, com tochas e foices, e, rapidamente, todos os habitantes estão a pé, armados como podem e, sem questionar, percorrem todos os cantos da aldeia em busca do criminoso. Encontram-no e lincham-no. Festejam até ser dia, dormem e a vida na aldeia volta ao normal.

Se substituirmos o grito da senhora por tweets ou posts e as tochas por telemóveis, o ano poderia a ser o nosso. Vivemos tempos em que os linchamentos mudaram do centro da aldeia para as redes sociais. Falo de muitos casos, mas em especial do Stradagate em que muita gente se apressou a linchar publicamente o seu mentor, sem direito a apuramento dos factos e a julgamento. Houve quem fizesse piadas, houve quem fizesse acusações, houve quem reportasse o canal, houve quem fizesse queixas às autoridades, houve quem tirasse a Internet aos filhos, preocupados com as más influências que podem chegar pelo pequeno ou médio ecrã. Nesta fase, sem factos apurados, não interessa se temos razão ou não e se o adulto de boné ao contrário é isso tudo de que foi acusado. Não interessa se ele abusava realmente de menores, seja sexualmente ou monetariamente. O que interessa é que alguma vez vamos estar equivocados e vamos linchar a pessoa errada. Já aconteceram, um pouco por todo o mundo, casos semelhantes em que, após a poeira assentar, se percebeu que tinha havido um mal-entendido. Excessos normais em revoluções como o caso do MeToo. Preferimos uma sociedade menos segura, com mais malfeitores soltos e impunes ou uma sociedade mais segura onde há danos colaterais e, por vezes, se prendem e lincham inocentes? Em teoria, todos preferimos a primeira, excepto se formos as potenciais vítimas dessa insegurança, preferindo arriscar sermos as potenciais vítimas dessa injustiça.

“Inocente até prova em contrário” já só é verdade para os tribunais e não para a opinião pública. Por exemplo, mesmo que o Sócrates não seja condenado, para grande parte do público será sempre culpado; às vezes, também acontece o contrário e, mesmo depois de julgados e condenados, há quem tenha uma falange de cépticos da justiça que acreditam na sua inocência, como é o caso do Carlos Cruz.

Há quem diga que as redes sociais apenas potenciam o pior do ser humano, mas discordo. Potenciam o pior, mas também o melhor. São uma caricatura da humanidade em que os seus traços são exagerados. Se, por um lado, temos o ódio que habita as caixas de comentários – basta descer um pouco e ver os comentários a esta crónica – por outro, temos correntes de solidariedade que seriam impossíveis sem as redes sociais, como aconteceu com o caso da bebé Matilde, há pouco tempo.

As redes sociais funcionam quase como uma consciência colectiva, quase sempre nivelada por baixo, em que fazemos todos parte desta multidão que se junta em fúria contra as injustiças e sem questionar as zonas cinzentas dos debates. Isto acontece porque temos todos um espírito justiceiro e queremos um mundo melhor? Tenho dúvidas. Acontece porque um assunto destes rende likes, cliques e visualizações. É a nossa dose de dopamina do dia. Fomos condicionados quais cães de Pavlov, em que vemos a nossa raiva e descontentamento recompensados com notificações e atenção digital. Contra mim falo, também. Dito isto, se o Hugo Strada fosse piloto de Fórmula 1, parava em todas as Pitas Stop. Génio. Palmas.

Sugestões e dicas de vida completamente imparciais:

Para rir: Summer Comedy, na Póvoa de Varzim, dia 9 de Agosto

Para ver: The Fountain

Para ler: Borbotos do Pensamento, de Dário Guerreiro