Antigamente, quem lucrava com a morte alheia eram os proprietários de agências funerárias e os herdeiros. Hoje, a morte é um negócio que dá de comer a muita gente, directa ou indirectamente. Se têm atração pelo abismo como eu, talvez tenham assistido ao aproveitamento da morte de uma pessoa mediática nos últimos dias. Um pouco por todo o lado, mas, especialmente, na CM TV. Para quem não viu, foi mais ou menos isto:
Meia hora antes do anúncio oficial da morte de Sara Carreira: “ALERTA CM! Sabemos o nome da vítima mortal, mas por respeito à família não vamos revelar já. É verdade, numa nota não relacionada, a família Carreira já se encontra no hospital e está muito consternada. Por respeito, não vamos identificar a vítima, repito.”
Passados cinco minutos: “Afinal já podemos anunciar porque ainda alguém anuncia antes de nós e é uma chatice porque se repararem o abutre mais gordo é sempre o que chega primeiro ainda o cadáver está quentinho. Foi a Sara Carreira! Agora faz todo o sentido a família Carreira estar no hospital, de certeza que ninguém tinha desconfiado. Fomos muito respeitosos em não revelar logo”.
Durante as horas seguintes: “Isto é uma notícia que nenhum jornalista gostaria de dar, mas como eu não sou bem jornalista pois se fosse despedia-me já deste canal, posso continuar a dar esta notícia durante 8 horas de forma ininterrupta e sem nada a acrescentar a não ser satisfazer a curiosidade mórbida dos espectadores deste canal que, tal como quem abranda na autoestrada para vislumbrar acidente alheio na via contrária, também aqui abrandam o zapping na esperança de verem sangue.”
Durante o dia seguinte: “Vamos agora ligar a pessoas aleatórias que conheciam superficialmente a família, mas que aceitaram falar como se fossem muito amigos. Dizem estar em choque, mas não em choque suficiente para falar connosco e contribuir para as audiências em torno da morte da jovem. Vamos ligar também aos Anjos porque fizeram a A1 no mesmo dia, passaram pelo acidente e tudo. Anjos da Guarda é que eles não são, pelos vistos.”
Mais tarde: “Agora vamos falar com a Maya para ela fazer uma peritagem do acidente. Maya afirma que aquilo é uma zona sem drenagem e que é muito fácil fazer aquaplanagem. Acho de mau tom a Maya, que tem dons adivinhatórios, não ter avisado antes que o acidente ia acontecer, mas pronto, isto já não se pode confiar em astrólogas como antigamente. Depois, temos aqui outro senhor que não se percebe bem se está em choque ou não porque está todo operado e tem apenas uma expressão que é a mesma para quando recebe a notícia da morte de alguém como para quando tem um orgasmo e/ou se entala numa porta. Ele afirma que a família precisa de privacidade e paz, mas segue a falar da vida privada dos Carreira durante meia hora e a contribuir para o espectáculo do sorver da medula do sofrimento alheio.”
Mais tarde: “Voltamos a repetir que o que que a família mais precisa é de privacidade e, por isso, no nosso jornal online vamos colocar várias notícias sobre a família Carreira e especular sobre as causas do acidente. Vamos, até, fazer referência a uma notícia que dava conta de excesso de velocidade no carro onde seguia Sara Carreira em 2017 para confundir as pessoas e lançar suspeitas e gerar mais discussão e mais indignação e mais cliques. Génios do marketing.”
No dia seguinte: “ALERTA CM! Funeral de Sara Carreira decorre com privacidade na Basílica da Estrela em Lisboa. Com que privacidade? Não sei, mas vamos filmar tudo para vos mostrar essa privacidade, enquanto as pessoas entram e tentam esconder a cara com os guarda-chuvas com a mania que têm direito à privacidade, num momento destes.”
Foi basicamente isto em loop que ainda continua. A culpa não morre solteira e, tal como num acidente em que os outros abrandam para ver, não vale refilar e buzinar se, ao passarmos por lá, também olhamos para o lado a tentar ver o que se passou. Por isso, não tentem lavar o sangue das vossas mãos que ele não sai, acreditem porque eu já tentei. A verdade é que muita gente critica a CM TV e eu acho injusto. É dos poucos canais em que podemos confiar e com o qual podemos contar. É coerente. Se, há cerca de quatro anos, esmifrou e transmitiu em directo o velório da criança afogada pela mãe, agora fez o mesmo com a Sara Carreira. A CM TV não discrimina ninguém e faz questão de tratar de igual forma, e de forma abjecta, a morte de anónimo e de famoso. Temos de lhes dar esse reconhecimento. Seria discriminatório a CM TV fechar os olhos à morte da filha de Tony Carreira e não fazer tudo por tudo para espremer todas as gotas de audiência deste caso. No fundo, num mundo cheio de desigualdades e privilégios apenas para alguns, a CM TV é o bastião da igualdade. Pena é nivelar todos por baixo, ao nível do rasteiro.
Por fim, para quem esteja a pensar “Ah, mas tu és um hipócrita e és igual a eles porque estás a escrever sobre este assunto!” Será? É que podia ter colocado o nome Sara Carreira no título e a foto dela a ilustrar o artigo que teria muitas mais visualizações, mas optei por não o fazer. Depois, pagam-me igual tenha o artigo mil leituras ou 100 mil. Por isso, hipócrita é a vossa mãezinha. Feliz Natal.
Sugestões: nem vou colocar sugestões só para dizerem que estou a tentar lucrar com isto.
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