Vamos por partes. Não há percurso escolar sem injustiças – hoje como ontem. Passar no liceu ou na faculdade, só para referir etapas em que já temos mais autonomia, sem ser ‘roubado’ em alguma disciplina, em alguma nota, em algum exame é como Natal sem bacalhau ou Páscoa sem folar. Faz parte. Às vezes, são mesmo grandes injustiças, produzidas por erro ou má fé – porque os professores são humanos e como em tudo há melhores e piores.
Mas, salvo honrosas excepções – quando se está perante ilegalidades ou abusos de poder – nada disto constitui matéria para mais do que um desabafo entre amigos e uma lamúria em família, porque a solidariedade faz bem e entre a reprimenda e a comiseração familiar, venha a comiseração ternurenta.
Como até há dois dias não conhecia a Maria Barros – e na realidade continuo a não conhecer – vou limitar-me a falar daquilo que a carta que escreveu ao Presidente da República (!) tem de preocupante e que não tem a ver com a frustração natural de alguém com 18 anos que não conseguiu algo com que sonhava.
Preocupa-me a presunção de excepção, preocupa-me a falta de resistência ao “não”, preocupa-me a imersão no “eu”. “Porque eu quero, porque eu mereço, porque eu preciso. Fá-lo-ei porque sinto que este é o propósito da minha vida, e de forma alguma merece ser desvalorizado ou esquecido por um 16.3 no exame de Físico Química A e por um sistema injusto”, escreve a Maria.
A Maria, e não está de certeza sozinha nisso, considera injusto sido prejudicada por uma nota que não chegou no exame de Físico Química A (igual para todos os alunos em todo o país). A Maria não aceita que por causa disso não tenha entrado no curso de Medicina à luz das regras que estão definidas (para ela – e para todos os alunos do país). A Maria quer, merece e precisa - e isso é o que importa.
Faço parte dos que acreditam que o sonho comanda a vida – mas os sonhos são exigentes para se tornarem realidade. É quase sempre por isso que esse “conseguimento”, para usar pela positiva esta expressão, é tão saboroso.
Aqueles que foram pais nos últimos 20 ou 30 anos, grupo do qual faço parte, tiveram condições de paternidade substancialmente diferentes das gerações que os precederam. Condições económicas, em primeiro lugar, e por inerência sociais e culturais. Isso reflectiu-se na educação que deram aos filhos. Uma criança é, desde que se vê a primeira ecografia, uma prioridade como nunca antes tinha acontecido. E por isso tem direito a tudo – das coisas que os pais nem sonhavam quando eram crianças até àquilo que imaginam ser necessário para que os filhos se tornem adultos bem-sucedidos e felizes. Mesmo quando o dinheiro é mais curto, esta geração de pais esfola-se para conseguir a melhor escola, a experiência do campo de férias, a viagem à Disneylândia, as aulas de dança ou de futebol, o último gadget no Natal e no aniversário. E isto é tudo normal e é feito, na maior parte dos casos, por amor (não se pode estar assim tão errado quando se fazem as coisas por amor).
Nesta volúpia de sermos os melhores pais do mundo dos melhores filhos do mundo esquecemo-nos de algumas coisas importantes. A primeira é que um não dá saúde e faz crescer. Porque vida fora vão existir muitos. A segunda é que, na maior parte dos casos, os nossos filhos são, graças a Deus, crianças e jovens tão normais como quaisquer outros. Com mais jeito para uma coisa do que para outra, com rasgos aqui e ali, com o seu carácter e personalidade, mas, nessa diferença que deve ser respeitada e estimulada, são miúdos basicamente iguais aos outros. Poucos serão génios ou dotados de um talento absolutamente fora do comum. (algumas reuniões de pais são sintomáticas da necessidade que os progenitores – mais que os filhos – têm de exibir as qualidades únicas dos seus rebentos). A terceira, que decorre muitas vezes da segunda, é uma necessidade de sublinhar o “dom natural” versus o trabalho. Fico espantada com a quantidade de pais a quem já ouvi dizer com um certo orgulho que o filho ou filha “não estuda nada”, sobretudo quando tem notas boas ou acima da média. Como se o trabalho não tivesse valor ou retirasse brilho à inteligência “inata”.
“Para que é que estudavas tanto, então, Maria?”, pergunta a jovem que não entrou em Medicina por meia dúzia de décimas. Pela mesma razão porque vais continuar a estudar se quiseres entrar no curso, passar nas disciplinas ao longo dos anos e, depois, na tua vida de médica, ser cada vez melhor. Pela mesma razão porque pessoas em sítios e funções tão diferentes no mundo inteiro trabalham tanto todos os dias – para ter uma vida melhor, para conseguir um trabalho que se gosta mais, para arranjar dinheiro para uma ideia e a lista continua.
O mundo é injusto, mas não é só para ti e já te deviam ter explicado isso.
P.S.- A discussão sobre as vagas em medicina e sobretudo as saídas profissionais de quem já teve média para entrar, já fez ou está a fazer o curso, é outra discussão. E essa discussão deve ser tida e com urgência.
Outras sugestões de leitura:
É imperdível porque se trata de uma voz única. A entrevista de Maria Filomena Mónica ontem no SAPO24.
Não é um texto do João Lobo Antunes e não é sobre o João Lobo Antunes. É sobre a bondade, por isso, de certa forma, é.
Nota: Versão editada para acrescentar link para o artigo da Visão em que foi divulgada a carta da Maria Barros.
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