Apesar da ausência do Presidente nas últimas duas edições, o Jantar de Correspondentes da Casa Branca não deixa de ser o principal evento de descompressão e desconstrução da política norte-americana, no que se pretende que seja uma celebração da primeira emenda, leia-se, da liberdade de expressão. Ao longo dos anos, contou com performances de comediantes como Jay Leno, Al Franken, Jon Stewart, Stephen Colbert, Seth Meyers, Conan O’Brien, Hasan Minhaj, bem como momentos de humor depreciativo por parte dos próprios presidentes, como o mítico vídeo de fim de mandato de Bill Clinton ou, já com Obama, o tradutor de raiva, interpretado por Keegan-Michael Key, ou o mic drop que ocorreu pelo término dos oito anos de presidência.

Este ano, a cerimónia ficou marcada pela atuação cáustica de Michelle Wolf, que tanto tem recebido ótimas críticas, como várias reações negativas. Michelle, de 32 anos, abandonou um emprego em Wall Street para se dedicar à comédia, começando a participar no programa Late Night with Seth Meyers a partir de 2014. Desde 2016, contribui para o The Daily Show with Trevor Noah. É stand-up comedian, presença regular do Comedy Cellar, já teve um espetáculo no Edinburgh Fringe e foi convidada da Autópsia às Eleições Americanas do comediante escocês Frankie Boyle. No último sábado, terá tido o - até agora - momento de maior exposição da carreira, ao enfrentar uma difícil plateia de jornalistas e altos funcionários da administração Trump.

A atuação, perdoem-me o cliché, não poupou ninguém. Num Mundo dividido e com a comédia sendo conotada à esquerda, às vezes pode ser tentador para um comediante cair no facilitismo de malhar apenas no inimigo, ou seja, Trump. Mas Michelle, ao longo da sua atuação de 19 minutos tensos e intensos, alvejou de forma certeira a administração, é claro, mas também o falhanço de Hillary e a conivência dos media liberais. Talvez por isso, estes últimos, sentindo o toque, tenham sido tão prolíferos em análises ao caráter ofensivo da performance de Wolf. A comediante estabeleceu o tom do seu número logo no início, com uma piada sobre o alegado envolvimento do presidente com uma atriz porno, mas sobretudo com uma isenção de responsabilidade importantíssima para a comédia: “Só relembrar aqui uma coisa, eu estou aqui para fazer piadas. Não tenho uma agenda. Não estou aqui para concretizar o que quer que seja. Logo, todos os congressistas que estão aqui, vocês devem sentir-se em casa”. Este ponto é fulcral para entender o alcance e a influência da atuação de Michele Wolf: o humor não se substitui à política e Wolf não é uma ativista.

Ao humor não cabe escrutinar. O humor será eficaz a pôr em causa o poder, quanto menos comprometido estiver com essa missão, e mais leal for ao objetivo de fazer rir. Michelle disse, numa entrevista anterior ao jantar de correspondentes, que não acreditava no “humor de professor cool, em que nos vamos rir ao mesmo tempo em que aprendemos qualquer coisinha”. Michelle acabou por fazer uma arrojada atuação de comédia para uma sala que representa uma sociedade que se esqueceu do que é liberdade de expressão e que de certo esperava os paninhos quentes que já não são só expectáveis, mas exigíveis. O que terá doído ao establishment mediático americano, não terão sido as considerações sobre a maquilhagem de Sarah Huckabee Sanders, a assessora de imprensa de Trump, mas a reflexão final sobre a relação dos media com o presidente, de como alimentaram e lucraram de um monstro que agora não controlam; de como fingem odiá-lo, mas na verdade o amam, como a um ex-namorado ainda não esquecido.

Como disse o comediante Dave Chapelle sobre o tema, “I didn’t see her pander once” (Não a vi procurar satisfazer a audiência). Michelle Wolf não escolheu ser acolhida no meio dos escrutinados e escrutinadores, mas causar um desconforto desnecessário, sublinhar a tensão existente, não cair na tentação da banalização, não assumir o papel de boba da corte. Talvez nos tenhamos esquecido de que o humor não tem como objetivo criar pontes, não se exige que aproxime, necessariamente. O humor não é uma plataforma para dizer o que cai bem. Contudo, Donald Trump, que já reagiu ao sucedido através da rede social do costume, tem razão num ponto específico: “o Jantar de Correspondentes da Casa Branca está morto”. Não pelas críticas que lhe são dirigidas, mas pelo comunicado da organização a demarcar-se do monólogo de Wolf. Fica difícil defender a primeira emenda, quando são os próprios jornalistas a obstar à liberdade de expressão.

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