As atitudes perante as vacinas vão desde a negação absoluta da sua necessidade às manobras para passar à frente de toda a gente e levá-la primeiro, passando pela desconfiança alimentada pelas teorias da conspiração (como a teoria de que poderão ser responsáveis pelo autismo). Pelo meio, há aqueles que têm medo mas estão dispostos a arriscar e os que nem podem decidir porque não têm acesso ao elixir.
Não são só as pessoas, individualmente, que mostram comportamentos diversos face à ameaça; os governos, instituições, organizações e as ocasionais manifestações de rua, também contribuem para uma cacofonia de achismos que, no seu conjunto, não pode deixar de ser considerada uma paranóia colectiva.
Neste momento, um ano e pouco sobre a descoberta do mal, mais de setenta laboratórios desenvolvem pesquisas sobre as vacinas, e sete destas vacinas estão já em circulação, certificadas por incontáveis autoridades e reguladores, regionais, nacionais e mundiais, nem todos de acordo, evidentemente. As vacinas aprovadas são dos laboratórios ou consórcios: Moderna, Oxford-AstraZeneca, BioNTech.Pfizer, Sputnik V, Sinofarm, Sinovax e Covaxin.
Uma coisa são as marcas, outra coisa são as fábricas. Uma vacina pode ser produzida em vários locais, dentro da mesma empresa, por acordo entre empresas, ou por sub-contrato. Esta profusão de origens, bem-vinda e necessária, provoca uma grande confusão na distribuição, uma vez que todos as queremos, estando os seus produtores ainda estão bem longe de atingir os números da procura. Outros factores que não deveriam ter interferência mas têm, são os nacionalismos e regionalismos. Nós primeiro, os outros... logo se vê.
Quem diria, por exemplo, que um país tão clássico como a Itália se apropriaria indevidamente de 250 mil doses de AstraZeneca em trânsito para a Austrália? Este episódio não é único, antes pelo contrário. Os Estados Unidos alegaram não exportar vacinas enquanto não houver em número suficiente para os seus compatriotas. A Europa e o Reino Unido andam num puxa para cá, puxa para lá, porque as doses produzidas na ilha não alcançam o continente, ou porque as produzidas no continente não chegam à ilha, ou ambas as coisas. Há o consórcio internacional, o Gavi (dirigido por Manuel Durão Barroso, se isto diz alguma coisa) cujo programa, Covax, se propõe liricamente enviar vacinas em número equitativo para o mundo inteiro, sobretudo para aqueles países que nem têm para comer, quanto mais para vacinar.
No passado dia 3 deste mês, foi com grande fanfarra que a Costa do Marfim e o Gana receberam respectivamente 600 mil e 504 mil doses. Dois países apenas, num universo de mais de uma centena (considerando que há cerca de duzentos ao todo, dependendo da fonte), receberam menos de um milhão de unidades, enquanto outros já vão nas centenas de milhões.
Não deixa de ser interessante que estas vacinas tenham vindo da Índia. Foram fabricadas pelo Serum Institute, em Pune. Esta empresa, fundada em 1966 e especializada em todo o tipo de vacinas, é simplesmente a maior produtora do mundo. Foi esta dimensão colossal – exporta para dezenas de países – que lhe permitiu apostar numa vacina contra o coronavírus antes dela existir. Ou seja, em agosto do ano passado, ainda nenhuma vacina tendo sido aprovada, já o Serum Institute estava a construir fábricas e a comprar frascos, numa postura que o seu dono, Adar Poonawalla, apelida de “risco calculado”. Actualmente, a Índia produz duas, a da AstraZeneca (sob o nome Covishield) e outra, criada por um laboratório chamado Bharat Biotech.
Assim, é de longe o maior produtor do mundo — e pode fazer aqui uma visita à fábrica do Serum Institute.
Como não podia deixar de ser – mas devia – existe uma componente política nas histórias do combate à Covid-19. Além das guerras das vacinas, há a das máscaras (e já houve das seringas). Nos Estados Unidos, por razões a que todos assistimos (mas que ainda assim desafiam o bom senso), ser “pró-máscara” é uma postura liberal e de esquerda, enquanto ser “anti-máscara” se tornou uma bandeira dos conservadores e da direita. Já em França e no País Basco, tanto a direita como a esquerda se manifestaram contra as máscaras. Pode dizer-se que são um sinal de respeito pela saúde dos outros, ou que é um atentado à liberdade individual. Nos países ditos mais civilizados, alguns jovens, que não têm bandeiras tão distintas como tínhamos no século passado, fazem questão de não usar máscara e juntam-se aos magotes numa demonstração de atrevimento destemido e desafio às normas.
E não é só a plebe rude que tem as suas opiniões estranhas. O ex-Presidente dos Estados Unidos, país com 331 milhões de habitantes, aconselhou os seus cidadãos a tomar lixívia, e disse que a pandemia iria desaparecer por si só; outro, no Brasil, com 213 milhões e o presente recorde de mortes diárias, o Presidente insiste que se trata de uma gripezinha que não assusta os verdadeiros machos.
Paralelamente, têm corrido os boatos mais estapafúrdios. Há, evidentemente, os que são contra as vacinas – todas – porque uma epidemia é a vontade de Deus, porque as farmacêuticas, essas bandidas, compactuam com teses demoníacas de alteração do ADN, porque incluem um chip que controla a mente, porque têm efeitos secundários terríveis, ou porque ser contra é simplesmente uma postura “cool”, de quem sabe o que os outros não sabem. Depois há as vacinas cuja origem e falta de transparência no processo de certificação levantam dúvidas, e que mais parecem criações de relações públicas e propaganda política, como é o caso da Sputnik e da Sinovac. Aliás, o PCP levantou na Assembleia da República a questão de saber porque é que a Sputnik não era usada no nosso país, insinuando que haveria tendenciosismo na sua não inclusão – olvidando que não foi aprovada pelo órgão competente da União Europeia e que milhares de soldados do exército russo foram vacinados em novembro, antes mesmo dos ensaios credíveis serem publicamente apresentados, já em fevereiro deste ano. Quanto à vacina chinesa, basta recordar que uma boa parte dos ventiladores que a China nos vendeu tinha falta de peças ou funcionava mal. Como se pode confiar num mercado assim?
Ou seja, existe uma dimensão ideológica onde só deveriam haver considerações sanitárias, ou existem ainda considerações sanitárias com coloração política. Todos têm razão e ninguém tem razão alguma, como sempre acontece quando se abate uma grande desgraça sobre os humanos.
A questão não é exclusivamente sanitária, mas do domínio da filosofia; como é que temos conseguido sobreviver a nós próprios?
[Peça atualizada às 8:40 de 21/03/2021]
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